Caro amigo,
Denuncio o processo
kafkiano com o qual o torturam, torturam seus familiares e ameaçam seus amigos,
e peço sua intervenção enérgica, já no dia 1º de janeiro, quando, espera a
nação cansada (mas ainda cheia de esperanças), estaremos retomando a
interminável construção da democracia brasileira. Uma obra de Sísifo, pois,
quando mais a supomos consolidada, mais a vemos ameaçada, como ainda agora. E
mais ameaçada é a democracia quando a política partidária e a indisciplina,
insuflada por oficiais-generais em comando, dominam os quartéis,
tradicionalmente afeitos, em nosso país, à insubordinação e à insurgência.
Árdua é a tarefa que o aguarda.
A infâmia que denuncio ocorre aí, ao seu lado, no Recife,
mas no silêncio dos quartéis, onde age impunemente a prepotência, e onde tanto
agiu, em tempos que não podemos esquecer, a tortura de quantos pernambucanos e
brasileiros de todos os quadrantes, muitos nossos amigos ou conhecidos,
imolados na luta contra a ditadura militar instalada a partir do golpe de 1º de
abril. Luta a qual, em novos termos, tivemos de retomar, desta feita para
impedir a continuidade do projeto protofascista civil-militar instalado a
partir do golpe que depôs Dilma Rousseff, a cujo governo servimos, cada um do
seu modo. Luta que agora lhe incumbe dar continuidade no desempenho de missão histórica que lhe
delega o presidente Lula como depositário da vontade da nação, expressa no
pleito de outubro último. Os velhos métodos do autoritarismo militar – como as cassações de mandatos, as
aposentadorias tanto quanto as reformas
compulsórias – são substituídos pela tentativa de, mediante punições
disciplinares desamparadas de arrimo legal, enlamear a biografia de um oficial
exemplar. Conhecendo os fatos, e apurando-os, a dignidade nos manda agir.
Omitindo-nos, nos transformaríamos em cúmplices.
A vítima da vez é o
coronel da reserva Marcelo Pimentel, seu conterrâneo, e seu vizinho, cuja
carreira – 38 anos na ativa do exército, 30 como oficial – encerrou como chefe
do estado-maior no Comando da 7ª Região Militar, em Recife.
Marcelo Pimentel – como não lhe será difícil apurar – foi
instrutor, comandante do curso de artilharia e chefe da divisão de ensino em
CPOR, capitão comandante de bateria de obuses, oficial de estado-maior em
brigada de infantaria, comandante de grupo de artilharia de campanha, ordenador
de despesas, adido de defesa e do exército em missão no exterior. Seguiu com
louvor todos os cursos requeridos a um
coronel do quadro do estado-maior, sempre promovido por merecimento.
Finalmente, concorreu em primeiro lugar à promoção ao generalato.
É esse o oficial que a nomenclatura bolsonarista do
exército, ainda governante, tenta ofender. Exatamente por isso: por haver sido,
o coronel Marcelo, na ativa, um oficial brilhante, legalista e democrata; por
continuar a ser, na reserva, um oficial democrata e legalista a quem desagrada
a perniciosa partidarização da forças armadas que a desvia de suas finalidades
constitucionais, ora intervindo na vida
civil, ora forcejando pelo inaceitável statu de autarquia política na
democracia republicana – que, contra os quarteis, a nação tenta construir desde
o golpe de 1889. O legalismo democrático,
que hoje é desvio para o estamento ainda governante, haverá de ser, no
novo governo, com você no comando da defesa, o modelo do bom oficial. Mas é
este modelo que se pretende abater punindo um oficial legalista, e eis o que
lhe peço evitar.
A formação castrense de Marcelo Pimentel foi completada pela
vida universitária e o curso de direito que o ajudou a compreender o
significado do golpe de 1964. Na reserva, livre das justas amarras que limitam,
ou deveriam limitar, a atividade político-partidária do oficial da ativa
(restrição ignorada pela súcia fardada que comanda o país a partir do terceiro
andar do palácio do planalto), dedicou-se à defesa da democracia e da
disciplina militar quebrada pela criminosa radicalização do exército pela direita,
obra de seus chefes graduados. As consequências, nos limites da tragédia, foram
vividas nos últimos quatro anos, e, com os dados de hoje, ainda é justo temer
sua sobrevivência no novo governo.
De que é acusado o coronel da reserva Marcelo Pimentel?
De em debates, palestras e artigos, em estudos acadêmicos,
classificar como golpe de estado parlamentar a deposição de Dilma Rousseff,
violência que, sabemos todos, contou com o decisivo aval de oficiais do alto comando sob a
liderança do próprio comandante do exército, o general Villas-Bôas. Que, não
obstante suas circunstâncias pessoais, continua ameaçando o país com novas
intervenções militares.
Oficiais da ativa comprometidos com a continuidade do
projeto protofascista não tergiversam quando se trata de, contra a lei e o
regimento disciplinar, filiar-se a pregações partidárias e golpistas. Assim se destacam, entre muitos, o atual ministro da defesa, os três comandantes
das armas e figuras menores como o general comandante da 10ª região militar,
dando o tom da insubordinação que contamina o conjunto da tropa, adestrada para
a obediência como reflexo condicionado. Descumprem a lei e o regimento
disciplinar do exército, ao tempo que negam as garantias da Lei n° 7.524/86,
que garante ao “militar inativo o direito à livre expressão do pensamento e da
opinião sobre temas políticos, filosóficos, ideológicos e de interesse público,
independentemente das disposições dos regulamentos disciplinares das Forças
Armadas”. Esse direito está sendo negado ao coronel Marcelo Pimentel, e por
isso vem ele colecionando processos e punições (contam-se em cinco), tanto
constrangedoras quanto ilegais, todas violadoras dos princípios constitucionais
que asseguram o direito à livre manifestação do pensamento. O objetivo é
humilhar, intimidar. É a arte clássica do autoritarismo amparado na força.
Marcelo Pimentel é acusado ora de “desrespeitar superior
hierárquico”, ora “de ofender Instituição-Exército”, por criticar, em artigo de
jornal, a bolsonarização do exército e a participação de oficiais da ativa e da
reserva na campanha eleitoral de 2018. É punido por haver aplaudido artigo
publicado no Estadão no qual o autor, um acadêmico, oferece crítica à conduta
de oficiais do exército nominados por desmandos no relatório final da CPI da Covid.
A questão central é o anacrônico, impróprio, indevido,
antirregimental e ilegal protagonismo político-partidário das cúpulas
hierárquicas das forças armadas, amesquinhando as corporações ao transformá-las
em partido político e fazer dos quartéis verdadeiros comitês-eleitorais, como
foram nas eleições de 2018 e 2022. A
história republicana registra quão nociva é essa partidarização, e exige nosso
permanente combate.
Por que punir Marcelo Pimentel, que defende a ordem
constitucional, e não aqueles que a tentam fraturar?
Despreocupados com o tráfico de cocaína em aviões da FAB –
vimos esse transporte até em aeronave presidencial – os serviços de
inteligência não cessam de monitorar o coronel Pimentel, que vem a ser
processado por haver produzido um tweet no qual faz restrições à nota-manifesto
do insubordinado atual ministro da defesa (seguida de manifestação de igual
teor e ilegalidade assinada pelos chefes das três forças) criticando o sistema
eleitoral e a segurança da votação mediante as urnas eletrônicas, jogando assim
mais lenha na pregação golpista do candidato à reeleição derrotado.
Pretexto após pretexto, o coronel Pimentel é agora punido
por “publicar ato ou fato militar que possa contribuir para o desprestígio das
forças armadas”. Sua indisciplina foi o registro na demora de atendimento de
seu pai, em tratamento de um câncer, em hospital militar. Não se apura a
eventual negligência do serviço público essencial, mas, pasme, a reclamação da
vítima!
Está à vista que se trata de perseguição politica, inominável
por definição, que não podemos admitir. Conheço esses fatos e os levo ao seu
conhecimento porque me foram relatados pela vítima. Mas quantas outras muitas
violências devem estar correndo Brasil afora, livres da denúncia da publicidade
e fora do alcance do novo ministro da defesa? A perseguição ao coronel Marcelo
Pimentel não pode ser vista como fato isolado, mas sua denúncia é oferecida
como ponto de partida de uma ação enérgica que se reclama do futuro ministro da defesa do governo
democrático do presidente Lula para impedir a continuidade da ignomínia, pois
não há conciliação possível com o inconciliável, tanto quanto é inconcebível a
acomodação de forças antagônicas. Se não é possível punir os criminosos –
admitamos apenas por argumentar –, que pelo menos possamos proteger suas
vítimas.
Receba um abraço esperançoso deste seu amigo.
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