Eis alguns indicadores da vida política do estadista Getúlio Dorneles Vargas, o mais longevo dos grandes políticos da República, aquele que mais cargos exerceria, que por mais tempo ocuparia a presidência — 18 anos — e que por mais tempo estaria presente na realpolitik e no imaginário das grandes massas. Foi o centro da vida do país de 1930 a 1954, e sua influência se faz notar ainda em nossos dias, passados 71 anos de sua morte.
A ditadura militar (1964–1985) se anunciou como sua negação
e, redemocratizado o país, o governo neoliberal de FHC prometeria, como
projeto, “o fim da era Vargas”.
Tomando o destino em suas mãos, o velho caudilho frustrou a
República do Galeão e, com sua decisão final — não podíamos antever então —,
adiou por dez anos a ditadura militar que se instalaria em 1º de abril de 1964,
antecedida pelos ensaios do 11 de Novembro de 1955 (deposição de Café Filho e
posse de Juscelino Kubitschek) e da Crise da Legalidade (1961), para nos
atormentar por 21 anos. O impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, a
ascensão do bolsonarismo e a intentona de janeiro de 2022 são indicações
concretas da sobrevivência, entre nós, do mal-estar democrático.
Personagem sem par no cenário político, caráter
exemplaríssimo e ao mesmo tempo múltiplo, ambíguo e contraditório, Getúlio
Vargas conheceu os aplausos e as críticas da esquerda e da direita; afagou
trabalhadores e empresários, sem conquistar a confiança destes. Levou a Força
Expedicionária Brasileira aos campos de batalha na Itália para defender a
democracia como princípio, quando comandava em seu país a ditadura do Estado
Novo, de inspiração fascista, sustentada militarmente por dois generais
germanófilos, Eurico Gaspar Dutra e Góis Monteiro, seus homens de confiança que
o deporiam em 1945, valendo-se dos ventos democráticos soprados pelo fim da
guerra e a derrota do nazifascismo.
A Carta do Estado Novo, mediante a qual o novo regime se
institucionaliza, ficaria conhecida como “a polaca”, em face de sua clara
inspiração na constituição polonesa de 1935, fruto do autoritarismo de Józef
Pilsudski. O redator da versão brasileira foi o jurista mineiro Francisco
Campos, integralista, que, não por acaso, seria convocado pelos generais para,
em 1964, redigir o Ato Institucional que institucionalizou o mandarinato
militar.
Em 1935, Vargas enfrentou um levante militar comunista,
utilizado como justificativa para o golpe de 1937. Em 1938, foi vítima do
putsch integralista, a horda fascista comandada por Plínio Salgado, com a qual
namorara. Entre um assalto e outro, enfrentou o levante paulista de 1932 contra
a modernização, falsamente registrado pela historiografia como “Revolução
Constitucionalista”. Venceu a guerra, mas jamais conseguiu convencer o
empresariado (ontem, como hoje, aferrado ao atraso) de que tentava salvar o capitalismo,
modernizando o Estado.
Suas iniciativas não despertaram a empatia da burguesia
industrial aqui instalada, assustada com o papel do Estado como agente de
desenvolvimento. As leis trabalhistas, se conciliavam a díade capital-trabalho,
supostamente encareciam o custo da mão de obra (é o que se diz ainda hoje!), e
o sindicalismo, mesmo sob controle, dava voz aos trabalhadores, o que
incomodava. De outra parte, as iniciativas na ordem econômica provocaram
resistência dos interesses político-econômicos dos EUA, interesses que falaram
em 1945 e em 1954, e voltariam a falar em 1964, como estão gritando, mais alto
do que nunca, em 2025.
Filho da oligarquia gaúcha, Getúlio chefiou uma revolução
destinada a combater o reacionarismo da política do café com leite, que
controlava a economia e a política nacionais, mas terminou conciliando com os
interesses da lavoura paulista e os pecuaristas mineiros. Estancieiro, fez-se
protetor dos trabalhadores urbanos — industriais de preferência —, mas não
conheceu a tragédia do campo e dos camponeses. Comandou, e com ela conquistou o
poder, uma revolução que, dirá, jamais desejou.
Em seus diários — os seus e todos os diários de estadista,
escritos para serem divulgados um dia — aparentemente iniciados no dia 3 de
outubro de 1930, data da deflagração da “revolução” (Getúlio Vargas – Diário.
Siciliano/FGV Editora, 1995, vol. I), ainda inseguro quanto aos passos que
estava condenado a dar, pergunta à História: “Que nos reservará o futuro
incerto neste lance aventuroso?” Prossegue, na mesma data: “Aproxima-se a hora.
[...] Não terei depois uma grande decepção? Como se torna revolucionário um
governo cuja função é manter a ordem? E se perdermos?” No dia 20/10, já em meio
à marcha, monologa: “Quantas vezes desejei a morte como solução da vida! E,
afinal, depois de humilhar-me e quase suplicar para que outros nada sofressem,
sentindo que tudo era inútil, decidi pela revolução; eu, o mais pacífico dos
homens, decidido a morrer”.
Nenhum outro dirigente brasileiro assimilou tão bem e tão
naturalmente quanto ele a ideologia da conciliação, embora nenhum outro tenha
logrado tantos avanços sociais. Falava pouco, ouvia muito. Era cuidadoso com
seus discursos, quase sempre lidos. Seus biógrafos consagram a habilidade como
sua principal arte política, que os adversários, jejunos nos conceitos do
filósofo florentino, chamaram de “maquiavelismo”. No entanto, quando deixou
definitivamente o poder, era um homem inapelavelmente só. Na última reunião de
seu gabinete, no Palácio do Catete, na madrugada de 23 para 24 de agosto de
1954, no amplo salão vazio embora repleto de presenças, viu-se abandonado até
mesmo por aqueles em quem mais precisava confiar. Nas ruas, havia quase um mês,
comunistas, udenistas e liberais, estudantes e intelectuais, animados pela
quase unanimidade da imprensa, exigiam sua renúncia. Este era o discurso
majoritário no Congresso e nas conclamações militares. Os trabalhadores
permaneciam em casa. Só saíram às ruas quando o féretro caminhava na direção do
aeroporto Santos Dumont, para a viagem derradeira a São Borja.
No bifrontismo da política gaúcha, Getúlio torna-se figura
de destaque da oligarquia chefiada por Borges de Medeiros; sua fundamentação
doutrinária é o castilhismo, de formação positivista, de onde possivelmente
decorre sua visão do papel do Estado — forte, centralizador e intervencionista,
e ao mesmo tempo paternalista e agente de desenvolvimento, além de
implacavelmente repressor, como foi nas razias contra comunistas e
integralistas. No final da vida, concilia-se com a democracia representativa..
Autoritário e, ao mesmo tempo, sensível às massas, trouxe
para a cena política os interesses dos trabalhadores, implantou políticas sociais e colocou na
pauta republicana, pela vez primeira, as questões sociais: deve-se a Getúlio
Vargas uma legislação trabalhista e previdenciária de nascença avançada em face
do atraso econômico e social do país. Alvo sempre da reação conservadora, é
ainda hoje, mesmo esfarrapada, vítima da sistemática depredação do
neoliberalismo.
Deve-se a Vargas a criação da carteira de trabalho (1932), a
jornada de oito horas (1932), o salário mínimo (1940), a CLT (1943), a
estabilidade no emprego após dez anos de vínculo (revogada na ditadura), a
remuneração das férias com salário integral e sua extensão para 20 dias anuais.
Tudo isso em país de industrialização incipiente, inserto numa formação
capitalista atrasada, na periferia da economia internacional e então, ainda
mais do que hoje, subordinado aos limites de uma economia agrária exportadora.
Foi esta a base do trabalhismo varguista, acusado de
“populista” (o caudilho passaria à história como “pai dos pobres”), combatido
sempre pela direita e pela coorte conservadora, lá atrás também pelo Partido
Comunista e pelo Partido dos Trabalhadores, desde sua fundação. O udenismo
reacionário de Eduardo Gomes e Carlos Lacerda fez-se a sua contraface.
Fora de dúvida, porém, é que se tratava de um trabalhismo
funcional, integrado a uma estratégia de conciliação de classes mediante o
apaziguamento dos conflitos com o capitalismo. Seu modus operandi era o
controle dos sindicatos pelo aparato estatal-burocrático, ao encargo do
Ministério do Trabalho. Esse esforço, contudo, jamais foi compreendido pela
classe dominante, divorciada de qualquer projeto de desenvolvimento nacional
minimamente autônomo.
Para além do apelo popular do trabalhismo varguista, que
ainda sobreviveria com João Goulart e Leonel Brizola, sua grande contradição
com a classe dominante e o imperialismo tinha raiz no projeto de
desenvolvimento associado à defesa da soberania nacional. É fácil explicar: a
esse projeto, que se dirá nacionalista, devemos a modernização do país via ação
do Estado — Companhia Siderúrgica Nacional (1941), responsável pela produção
nacional de aço, insumo básico para a indústria (privatizada em 1993, no governo
Itamar Franco); Companhia Vale do Rio Doce (1942), estatal estratégica na
exploração e exportação de minério de ferro (privatizada em 1997 por FHC); a
criação do Instituto do Açúcar e do Álcool (1933), do Conselho Nacional do
Petróleo (1938) e do IBGE (1936).
E, na boa linha da CEPAL e de Raúl Prebisch, a política
nacional de substituição de importações — fundamental, naquela altura, para
sustentar o esforço industrializante.
Politicamente, sua marca, a que fica, é o nacionalismo: o
desenvolvimento econômico autônomo como instrumento de defesa da soberania
nacional foi o eixo ideológico de sua Carta-Testamento, esquecida pelos
trabalhistas de hoje, nestes tempos em que parece tão atual sua mensagem.
Quando o imperialismo, declinante e ameaçado, e por isso mesmo ameaçador, se
mostra mais agressivo e a reação nacional se revela tão tímida.
***
Make America Great Again — As agressões de Donald Trump ao
Brasil, espúrias no conteúdo e na forma, já causam prejuízo bilionário ao nosso
país, e lançam um alerta sobre a manutenção dos níveis de emprego e da
produtividade. Além das tarifas, elas compreendem declarações
intervencionistas, notas provocativas e o expediente mesquinho da suspensão de
vistos. A elas vem se somar, agora, a aproximação de um aparato militar à costa
da vizinha Venezuela, fato a que o Brasil, sem tropas e sem serviço de inteligência,
assiste em estado de perplexidade. Neste contexto, Tarcísio de Freitas,
governador de SP — o estado brasileiro mais afetado pelo tarifaço — e
pré-candidato da classe dominante à presidência da república, permite-se sair
com esta: “Ele [Trump] está querendo colecionar vitórias. Então, por que não
entregar alguma vitória para ele? Por que não fazer algum gesto?” É a
viralatice escrachada, sem pejo nem medo do ridículo.
As consequências vêm depois, ensinava o Conselheiro Acácio —
Em discurso de 1977, Deng Xiaoping, ideólogo da abertura econômica chinesa,
pondo de manifesto o atraso de seu país em face do desenvolvimento das grandes
potências, ditou o que deveria ser feito: “A chave para conquistar a
modernidade é o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. E, a menos que
prestemos especial atenção na educação, será impossível desenvolver a ciência e
a tecnologia”. Em 2020, a China investia em Ciência e Tecnologia 2,4% de seu
PIB (US$ 14 trilhões) e o Brasil 1,2% de seu PIB (R$ 1,449 trilhão). Em 2025 o
orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação sofreu um corte de
25%, atendendo às ordens do “ajuste fiscal”.
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
Nenhum comentário:
Postar um comentário