Com o objetivo de entender melhor o conceito, é necessário
desfazer a relação siamesa entre ditadura, militar ou não, e golpe de Estado.
Para entendermos o conceito de golpe de Estado, convém o
apartar do sentido consagrado entre nós de golpe militar, título daquelas
intervenções até recentemente corriqueiras na América Latina e que sempre
terminavam fechando parlamentos, rasgando constituições e exilando a
democracia. Presentemente, a classe dominante vale-se da legislação que ela
mesmo produziu, e muda as leis para adequá-las aos objetivos do golpe, assim
como o Judiciário, a seu serviço, muda a interpretação das leis e dita
sentenças e acórdãos convenientes.
Ainda para precisar o conceito é necessário desfazer a
relação siamesa entre ditadura, militar ou não, e golpe de Estado. Nem a
ditadura é o segundo momento do golpe, nem toda ditadura é, por definição,
militar. A ciência política registra, dentre outras muitas acepções, a
“ditadura parlamentar”. No Brasil, cogita-se usar o termo “ditadura da toga”,
por razões conhecidas.
Os conceitos de ditadura, portanto, são muitos e variados e
não é conhecida a hipótese de ditadura pura, pois quase sempre nela se associam
os poderes econômico e político, partidos, parlamento e Judiciário. Nossa última, é por vezes chamada “ditadura
civil-militar”…
Operados na sede do poder e pela coalizão que detém sua
hegemonia, os golpes de Estado constituem sempre um ato de força, mas não
necessariamente pela violência física. Podem decorrer de rupturas
constitucionais ou legais, como podem ser ditados mediante aparente respeito à
ordem jurídico-legal, levados a cabo tanto pelo Poder Executivo quanto pelo
Parlamento ou pelo Judiciário, isoladamente ou em associação, que é a última
experiência brasileira.
O que pode haver de pacífico em relação ao conceito de golpe
de Estado é sua definição como ruptura, dentro ou não da legalidade, de cima
para baixo, de uma ordem política, como, com largueza de exemplos, ilustra
nossa História.
O levante civil-militar que levou Getúlio Vargas ao suicídio
foi um golpe militar, definido pela sublevação das Forças Armadas, mas que não
infringiu a ordem constitucional, como a série golpe-contragolpe de 1955 e a
emenda parlamentarista de 1961, feita para minar os poderes do presidente João
Goulart.
Já o golpe de 1964 se fez com todas as características
consagradas pelo modelo clássico, a saber, intervenção militar e revogação da
ordem constitucional, supressão da democracia representativa e repressão dos
adversários.
Segundo a forma de irrupção, o sucesso dos golpes muito
depende da surpresa e da rapidez com que são executados e consolidados. Nesta
categoria, temos o golpe de 1937. O golpe de 2016, por sua vez, foi costurado
por mais de um ano e em céu aberto e sua implantação permanece inconclusa.
O golpe em curso, planejado e executado por uma articulação
que compreende setores da alta burocracia estatal (Polícia Federal, Ministério
Público), o monopólio político-ideológico da mídia e o poder econômico
(destacadamente o capital financeiro nacional e internacional). Foi operado no
Congresso, articulado com o Palácio do Jaburu e o Poder Judiciário. A deposição
da presidente Dilma Rousseff foi, à ausência de amparo legal para a
justificativa, objetivamente um golpe de Estado que se repete quando os novos
dirigentes adotam um programa de governo política e economicamente em conflito
com o pronunciamento da soberania popular, e a vontade expressa da maioria.
Uma das características do golpe de Estado é sua autonomia
em face do movimento social (e neste ponto a reflexão olha para a História
brasileira), por uma razão evidente: só pode dar golpe quem dispõe de presença
no poder como delegado da classe dominante. Esse golpe ignora o movimento
social, mas em face dele não assume postura de indiferença.
Assim, antes de responder a um apelo histórico, o golpe se
dá contra o movimento social, e por regra contra o processo histórico,
interrompendo-o ou tentando alterar seu curso. Na América Latinam, trata-se de
expediente corriqueiro levado a cabo para ‘corrigir’ o pronunciamento eleitoral
(Brasil, 1955, tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitscheck e João
Goulart), ou pré-condicioná-lo, hipótese da presente tentativa de inviabilizar
a candidatura de Lula nas eleições de 2018.
Por que, então, a classe dominante, que exerce o monopólio
do poder, lança mão desse expediente? O golpe, pela sua rapidez em produzir
efeitos e capacidade de construir pontes sobre empecilhos políticos ou
jurídicos, é a forma mais efetiva e rápida de defesa de seus privilégios. A
hegemonia da classe dominante depende da acomodação de interesses do bloco no
poder, acomodação que pode compreender conflitos em questões não essenciais,
como, por exemplo, a democracia e o processo social.
O poder é uma aglutinação de forças econômicas que se
acomodam para usufruí-lo, embora possa haver disputas entre as diversas
facções. Cada segmento procura pôr na liça, como prioridade, seus privilégios,
que precisam ser mantidos ou ampliados, segundo as circunstâncias.
A questão crucial é que todo Estado é de classes, e a
construção do poder e seu controle refletem o nível da luta de classes que
depende, ainda hoje, do nível de organização dos trabalhadores. Se às forças
trabalhistas não é ensejado o golpe de Estado, abre-se para elas, porém, o largo
espaço da irrupção social.
O bloco no poder, sempre monolítico na sustentação dos
interesses de classe, muitas vezes sem ter sua hegemonia ameaçada, pode
conviver com disputas internas em torno de questões adjetivas. Exemplar é a
chamada ‘crise de novembro de 1955’, quando as Forças Armadas, fortemente
partidarizadas, se dividiram em face das eleições presidenciais, pondo em rota
de colisão setores golpistas (aqueles que dentro do governo vetavam a posse de
Juscelino Kubitscheck e João Goulart), e as forças legalistas, que defendiam a
posse dos eleitos.
Nesses termos se agrupavam, sem considerar os interesses de
classe, visões de sociedade e de País, sem considerar os minados campos de
esquerda e direita, embora toda a esquerda brasileira militasse na defesa da
legalidade, bandeira que dava sombra a comunistas, petebistas, progressistas de
um modo geral, o ministro da Guerra e lideranças conservadoras como Sobral
Pinto, advogado e líder católico.
Nossa História registra duas tentativas de golpe por forças
minoritárias, as quais, por isso mesmo, foram facilmente esmagadas pelo poder
dominante: a intentona integralista de 1938 e a tentativa de tomada de poder
pelos comunistas de Prestes, com o levante de 1935. Mas essas intervenções mais
se coadunam como um subgrupo de golpe de Estado que a literatura classifica
como ‘assalto ao poder’ ou putsch.
O golpe de Estado também pode ser motivado pela necessidade
de o bloco no poder, como procurador ou despachante da classe dominante,
ampliar seus espaços. Esse modelo é ilustrado pelo golpe varguista de 1937 e
pela frustrada tentativa de golpe do ex-presidente Jânio Quadros em busca de
mais poder ou poder absoluto (1961), quando, novamente, o bloco no poder se
dividiu, gerando a crise que se concluiu na posse de João Goulart e a
concordata de que resultou o golpe do parlamentarismo, assegurando a posse do
vice após retirar-lhe os poderes conferidos pelo presidencialismo, sob cujo
regime se elegera.
O leitmotiv mais frequente dos golpes de Estado, que não
afetam o caráter do poder, é a reação da classe dominante a qualquer movimento
que lhe pareça ameaça de alteração na composição do poder, como, por exemplo, a
emergência ‘dos de baixo’ arguindo o direito de presença na coalizão
governante.
Em outras palavras, a gênese da disputa, variando caso a
caso sua aparência, jamais comporta pôr em risco os interesses da classe
dominante, pois essa permanece unificada na defesa de seus privilégios contra
as reivindicações das forças populares. Na verdade, as duas ações, caminhando
em sentido contrário uma da outra, fortalecem os interesses instalados, a
agressividade da direita devendo contribuir para a reorganização das forças
sociais progressistas.
O golpe de 2016 tem sua explicação na recusa, por setores
majoritários da classe dominante, da continuidade da coabitação no governo de
centro-esquerda inaugurado com Lula em 2003. Tal recusa desfaz, mais uma vez, a
ilusão da conciliação de classe, velha ideologia disseminada anacronicamente
pelo Partido Comunista desde que elegeu como prioridade de sua estratégia a
luta contra o imperialismo, em evidente prejuízo da luta interna que
forçosamente radicalizaria a luta de classes.
O golpe iniciado em 2016 é a retomada do poder pleno pela
direita (agrária, industrial, financeira), em um momento em que a reedição do
pacto lulista se mostrava inviável, como inviável seria a continuidade das
reformas democratizantes sem a companhia de um programa de forte redistribuição
de renda, vetado pela Casa Grande.
O golpe pode ser visto, igualmente, como uma vacina de duplo
efeito, primeiro inviabilizando a continuidade das reformas do governo de centro-esquerda,
assegurando o caráter duradouro das reformas conservadoras implantadas pelos
golpistas a toque de caixa. Tendo de haver eleições, seria preciso tomar
aquelas providências necessárias para impedir o retorno, pelo voto, dos
segmentos apeados do poder no impeachment. É dessa operação que cuidará o
julgamento/espetáculo previsto no dia 24.
Roberto Amaral - escritor e ex-ministro de Ciência e
Tecnologia.
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