No teatro elisabetano, o coro era figura sem presença na
trama, inventada para anunciar ou esclarecer passagens futuras na tragédia ou no drama. Com a tosca aparição
nas telas da CNN, no último 15 de junho, os atuais postulantes da Casa Branca
ilustraram a decadência política da sociedade estadunidense, da qual são fruto
legítimo, assim como foi produto inevitável o lento e previsível declínio do
império romano, ensandecido pela loucura do poder supremo e universal.
Sendo o epicentro, os EUA não encerram, porém, o universo
das nuvens cinzas. A história presente nos acena com um processo político cujas
pinças se espalham pelo mundo e ameaçam engolfar a Europa, fazendo-nos rever os
anos 20-30 do século passado –desta vez, porém, com um elemento distintivo
crucial: se naquele então os EUA cumpriam o papel militar e ideológico de
esteio democrático, hoje, mil vezes mais poderosos, são a fortaleza da reversão
protofascista, que, na loucura do dever missionário auto-atribuído, procuram
levar ao mundo inteiro, porque seu código de valores mudou nas pegadas do
capitalismo financeiro monopolista.
O débil presidente de direita e o meliante que o desafia carecem de relevância. Desgraçadamente, Trump, tanto quanto Biden, ou quem venha substituí-lo na campanha mal iniciada, não constituem um ponto fora da curva na história política do império norte-americano.
A política, na parte do mundo que nos toca, regida pelos
mesmos astros, marcha na toada dos tempos. Após o suicídio já quase longínquo
da URSS, seguem-se a derrocada da socialdemocracia e o avanço continuado ora da
direita, ora da extrema-direita. O sinal mais trágico já nos foi enviado pela
Itália, e pode ser repetido por franceses no próximo domingo, como pelos
alemães no ano que vem. O Fratelli d’Italia alçado ao poder pelo voto
democrático – como antes foram Mussolini e Hitler, como foram recentemente as
caricaturas Bolsonaro e Milei –-, colocou na chefia do governo a neofascista
Giorgia Meloni. Na Alemanha, a socialdemocracia desmorona enquanto crescem os
grupos nazistas (que também já proliferam por aqui). Lá, até os verdes são de
direita. As eleições gerais para
renovação do Bundestag devem ocorrer em 2025, e além da derrota do
primeiro-ministro Olaf Scholz, e de seu
SPD, que nas pesquisas recentes ocupa o terceiro lugar nas referências dos
eleitores, é previsível a ascensão de uma direita patologicamente intoxicada
pelo chorume nazista que nos levou ao que todos sabem, porque falou à alma
profunda do pangermanismo, como o Duce sintetizou, com o fascismo, o sonho
italiano de reviver as glórias de um império perdido nas brumas da história.
As eleições norte-americanas não alterarão o processo
histórico: navegam em sua vaga. O governo de Meloni, que acompanha as
diretrizes dos EUA na OTAN, não tem término aprazado. O movimento está na
França, com o fim já proclamado da hegemonia do Em Marche de Emmanuel Macron,
que, todavia, permanecerá mais três anos habitando o Palais de l’Élysée,
qualquer que seja o anúncio das eleições de domingo. É delas, portanto, que
devemos tratar.
Como os astros e as pesquisas aparentemente cientificas
anteciparam, o primeiro turno confirmou
o avanço do ultradireitista Front National, de Marine Le Pen, mas sem
assegurar-lhe a maioria absoluta no parlamento (faltaram-lhe preciosos nove
votos). A prevista derrota das esquerdas (comunistas, socialistas, ecologistas,
progressistas) todavia, não se deu. O desempenho eleitoral da Frente de
Esquerda surpreendeu, colocando-a em segundo lugar, a cinco pontos de Le Pen. O
grande derrotado, qualquer que seja o resultado de domingo, é Macron. Esta é a única unanimidade entre os
analistas e Marine Le Pen, anunciada candidata à sua sucessão, insinua a
conveniência da renúncia do presidente em face de eventual derrota acachapante.
Inábil jogador de xadrez, embaralhou as pedras com a dissolução da Assembleia e
a consequente convocação das eleições, na frustrada expectativa de repetir o
lance usual nas táticas da direita: apresentar-se como a alternativa salvadora
entre a ameaça dos extremos. No momento em que escrevo, o professor Marco
Antônio Rodrigues Dias lembra a inutilidade de qualquer tentativa de antevisão
do segundo turno, por absoluta ausência de segurança empírica. Valem tanto
quanto a quiromancia. Ademais, por que tanta aflição se estamos já a um passo do
pleito? Tratemos, pois, daquilo que, segundo nosso ponto de vista, parece hoje
definido.
Deve ser tido como favas contadas o avanço da
extrema-direita, e, seja nosso consolo, a sobrevivência da esquerda, desta
feita se superando numa política de frente que interrompe o divisionismo de
muitas eras, vencido no Brasil em 2022. Melhorou seu desempenho em face das
últimas eleições. O medo, como se vê, pode ser bom conselheiro. Descartada a
vitória do En Marche, a única alternativa será a coabitação – repetindo as
experiências do socialista François Mitterrand (1986-1988) com a centro-direita
de Jacques Chirac, e Chirac-Jospin (1997-2002) – trazendo à tona a quase
certeza da instabilidade política que, partindo da França (que com a Alemanha
constitui seu centro econômico-político hegemônico) pode atingir a Comunidade
Europeia e mesmo a OTAN.
É preciso, porém, pôr de manifesto o distanciamento político
daquelas passadas coabitações, compreendendo esquerda e centro-direita, com a
expectativa do lamentável encontro da direita de Macron com a extrema direita
protofascista. A querida Rosa Freire d’Aguiar lembra que a França da Liberté,
Égalité, Fraternité é a mesma que a menos de oitenta anos foi governada por um
primeiro-ministro fascista, Pierre Laval, isso na “República de Vichy” chefiada
pelo Marechal Philippe Pétain, a serviço do exército alemão invasor. A
humilhante derrota para a Alemanha é muitas vezes invocada para explicar a
indigência moral. Mas o que dizer de hoje, quando boa parte dos franceses pode
estar elegendo um novo Vichy?
Tímida aragem chega da Grã-Bretanha, com a confirmação da
derrocada do Partido Conservador, após 14 anos de mando e desmandos. Mas o
Partido Trabalhista que controlará a Câmara dos Comuns e nomeará o
primeiro-ministro não guarda raízes com o Labour Party de Jaremy Corbyn. A
política externa permanecerá intocável, e o novo governo se limitará a
enfrentar as consequências da desastrada saída da Comunidade Europeia. O
ex-império está tão doente quanto a família real, e permanecerá como província
de sua ex-colônia.
Nosso continente vive seus abalos. O Brasil, graças ao
carisma e ao sacrifício de Lula, conteve a continuidade da extrema-direita.
Teve, porém, o PT, na campanha e no governo, de aliar-se a setores
conservadores, e, minoritário, enfrenta a oposição ativa do mais reacionário
Congresso de quantos conheceu a República. E, pela primeira vez, assistimos, em
país flagrantemente dividido, uma extrema-direita organizada e mobilizada,
enraizada em grandes setores populares, alimentada por setores da ordem econômica,
apoio que se reflete na oposição que os grandes meios de comunicação movem
contra o governo de centro-esquerda.
O Paraguai segue na estabilidade dos governos de direita. O
Partido Colorado permanece no poder
praticamente desde 1887. São desanimadoras as perspectivas do Peru e do
Equador. Na Bolívia, vítima de guerra híbrida, o governo conseguiu conter mais
uma tentativa de golpe militar. Mas a guerrilha inexplicada entre Evo Morales e
Luís Arce poderá afastar a esquerda nas próximas eleições, além de constituir
um desserviço para a educação política das massas. Há, contudo, o que
comemorar, como as indicações de que a Frente Ampla de José Mujica pode voltar
ao poder no Uruguai. O grande feito, de qualquer modo, é a eleição de Claudia
Sheinbaum no México, com 60% dos votos e conquistando dois terços o Congresso.
Que esse panorama ajude a esquerda e as forças populares de
um modo geral a compreenderem o desafio político-ideológico das nossas eleições
municipais deste ano.
***
Os tropeços da pequena política- Em evento recente no Rio de Janeiro, a inauguração de um conjunto habitacional, o presidente Lula saudou Eduardo Paes como “o melhor prefeito que esse país já teve”. Uma inverdade e uma injustiça. Para citar poucos, Lula menosprezou as administrações paulistanas de seus correligionários Luiza Erundina (então no PT), Marta Suplicy e Fernando Haddad, com quem, aliás, estivera minutos antes.
Silêncio tonitruante – A louvável coragem exibida por Lula
na defesa de Julian Assange, jornalista duramente perseguido pelo estado que se
dizia paladino da liberdade de imprensa, bem como na denúncia do genocídio
palestino (a que a “comunidade internacional” assiste perplexa e imóvel), é
digna de aplauso e nos enche de orgulho. Em face dela, machuca os ouvidos o
silêncio do nosso governo sobre o episódio da detenção e deportação - sumária -
do professor palestino Muslim Abuumar e sua família, inclusive a esposa grávida
de sete meses. Abuumar, os apoiadores de Lula e a sociedade como um todo
merecem uma explicação.
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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