O cerco vai se fechando e os agentes políticos do horror
partem para movimentos agônicos de tudo ou nada, calculando variáveis que vão
desde a hegemonia política à economia, passando, sobretudo, pela batalha de
comunicação nas redes sociais, a nova arena da disputa por influência global.
Acossado por um processo de impeachment que ninguém sabe
muito bem se pode ou não prosperar no Senado, Donald Trump resolveu arregaçar
as mangas e se precaver promovendo aquilo que a imprensa internacional mais
ama: uma crise bélica em que as opiniões políticas se estilhaçam como
fragmentos de granada.
É um movimento muito bem pensado, mas que aposta no caos do
discurso para ganhar espaço político. Explico: enquanto a opinião pública
internacional ficar especulando sobre as razões de Trump assassinar o general
iraniano Qasem Soleimani e mais dois milicianos iraquianos no aeroporto de
Bagdá - eles também têm milícias -, o rolo compressor da espionagem, do
aparelhamento judicial, das sanções, do protecionismo e do fanatismo ocidental
revestido de ódio vai prosseguir impávido e turbinado pela couraça do novo
assunto galvanizante.
Depois de muito citarmos James Carville e seu “é a economia,
estúpido”, é hora de começarmos a citar Chacrinha: “eu não vim para explicar,
eu vim para confundir”, ou, pelo menos, adaptar para: “é a comunicação,
estúpido”.
O general iraniano assassinado por Trump era uma estrela no
Instagram. Isso certamente assustou mais os engenheiros da guerra que o fato de
ele ser o general mais admirado do Irã. Em tempo de redes sociais e fake news,
o exercício da influência política migrou da disputa rudimentar por petróleo ou
dólares para o campo de guerra da comunicação digital. E eles irão matar por
isso, como ficou claro com mais este atentado terrorista de Trump e com o
atentado terrorista de Eduardo Fauzi, ídolo conceitual das jornadas de 2013 no
Brasil.
O terrorismo de Estado está em alta, nos EUA, no Brasil e em
boa parte do mundo. E ele se reaclimatou no Brasil, entre outras coisas, com o
forro eficiente da premonição reversa, dispositivo retórico do universo Steve
Bannon: lança-se o medo, através de especulações sobre o possível terrorismo de
movimentos sociais populares, sindicatos e partidos (MST, MTST, CUT, PT),
instala-se um discurso institucional para combatê-lo (Moro e seu projeto anticrime)
e a palavra “terrorismo” passa a ser furiosamente usada por todos os veículos
de comunicação, inclusive com a colaboração dos comentadores progressistas (que
são obrigados a falar sobre o tema).
O sentido de terrorismo está em cena e passa a ser disputado
por duas linhas políticas: a sem caráter (a extrema direita que é terrorista) e
a ingênua (a esquerda que ainda sonha em convencer a opinião pública com
argumentos racionais).
No Brasil, com o jornalismo que temos, fica fácil de prever
quem leva a melhor.
Pior do que isso é a realidade incontornável dos fatos: a
extrema-direita produz terrorismo, o Estado não se manifesta (e também produz
terrorismo) e ambos acusam a esquerda de ser terrorista (basta pensar em
Luciano Hang e em sua Estátua da Liberdade inflamável).
É o caos do sentido que acaba por favorecer os
franco-atiradores de projéteis, extremistas de profissão, terroristas de
discurso. Trump, Bolsonaro, Nethanyahu e racistas em geral, eles vieram para
matar e o mundo inteiro sabe disso, inclusive e sobretudo o mundo jornalístico,
que se abstém de emitir cifras de opiniões no corpo das matérias supostamente
factuais em nome da neutralidade asséptica da informação.
Como na experiência do nazismo e do holocausto, depois é
tarde para se arrepender.
O timing de Trump é perfeito. O terrorismo do Estado
americano gosta de surpreender nos primeiros dias do ano cristão. É um recado
daqueles que acreditam que uma nova era virá, a era de sempre, a era da guerra
e da morte.
Trump garante, assim, sua reeleição. A Europa assiste inerte
como sempre e a América do Sul respira, pois com as atenções realinhadas à
clássica engrenagem EUA-Oriente Médio-Petróleo-Europa-Vassala, a energia
necessária para prosseguir com a devastação institucional latino-americana será
realocada.
Aliás, diga-se de passagem: a América Latina já foi
destruída, com destaque para o Brasil. Não é mais preciso investir preocupações
com este subcontinente sob escombros.
Curioso é constatar que tem muito brasileiro que se diz de
esquerda que pondera sobre o dedo americano nas jornadas de 2013, no golpe
contra a democracia e na eleição fraudulenta de Bolsonaro.
Eles veem um governo assassinar um general de outro país em
um aeroporto internacional e oferecer as imagens como bônus midiático para uma
imprensa internacional acuada pelo poderio semiótico das redes sociais e optam
pela cegueira doméstica e pela ingenuidade generosa dos adesistas de turno.
O ataque dos americanos à soberania dos povos do Oriente
Médio é um soco nesses brasileiros que negam o papel dos americanos nas
jornadas de 2013 e nos golpes que se sucederam em toda a América Latina nos
últimos 70 anos.
Jornais brasileiros costumam chamar cachorramente o discurso
realista que destaca a ingerência americana sobre o Brasil de
“antiamericanismo”. Para eles, o PT é antiamericanista - o que na tradução
correta, torna-se um tremendo elogio (pois trata-se de um sinônimo de defesa da
soberania).
A guerra da comunicação associada à carnificina das guerras
tradicionais está de volta, com a pompa das velharias editoriais caquéticas das
agências internacionais. Não é a toa que o sintagma “Terceira Guerra Mundial”
tenha sido o assunto mais comentado do mundo, instantes após o atentado
terrorista do governo americano em Bagdá.
Uma guerra sem Twitter, sem Instagram, sem Facebook, sem
Google, simplesmente não existe no atual estado apodrecido de coisas. Ela
começa nas redes e depois de alastra com os assassinatos (que a imprensa
convencional chamará de “baixas” de guerra”).
Estamos, sem dúvida, diante de uma novidade. Essa guerra
anunciada atende a todos os mesmos velhos interesses do império, mas tem-se
agora o componente adicional das redes sociais, cujo significado prático ainda
é uma incógnita.
Como vão se comportar as redes diante de uma guerra que
também será cultural e narrativa? Como se comportarão os ideólogos do
terrorismo digital como Steve Bannon e Carlos Bolsonaro diante de um novo
estilhaçamento moral propiciado por imagens de crianças fuziladas e mulheres
com a carne retorcida nos escombros de suas casas?
Um gesto terrorista de guerra como este de Trump é um
acelerador de história. Teremos desafios importantes pela frente, não mais só
recobrar a democracia perdida no Brasil, como recobrar a capacidade de repensar
formas de governo e de civilização.
Trump deve conquistar a fatia do eleitorado americano com
pendores racistas e provincianos com este ataque. Mas o mundo estará sendo
lançado ao seu limite de tolerância contra a extrema violência dos fanáticos
conservadores.
O Brasil, finalmente, pode ter encontrado o caminho para
liberar as amarras de sua inércia social e confirmar o que 9 entre 10 analistas
de América Latina têm defendido em suas leituras: o próximo país a entrar na
engrenagem dos imensos protestos no continente será o Brasil.
Quando associada aos estudos da linguagem, a história
costuma ser até um pouco previsível. Não é, não foi e nem será gratuito o
retorno do tema “Jornadas de 2013” neste presente ingrato e complexo que nos
rodeia. Trata-se de uma ferida ainda aberta na compreensão do Brasil recente.
A mera menção a 2013 está latejando na medula da história
brasileira: “preparem-se, porque agora os protestos serão para valer”.
Por Gustavo Conde.
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