Janot e Gilmar Mendes: ambos têm razão.

O insólito duelo verbal revela a lamentável e pobre vida política nacional.

A crise que engolfa a República desde 2013 é eminentemente política. E na política é que devemos procurar uma saída. Os desarranjos econômicos, de velha data, são consequências que não encontrarão alternativa se tratados como fenômenos em si, como querem os economistas oficiais e tonitrua a grande imprensa. A crise, política, não nasceu com ele, mas agravou-se profundamente com o golpe de Estado midiático-parlamentar instalado com a deposição da presidente Dilma Rousseff.
O golpe se inaugura com o impeachment, mas nele não se esgota, pois o ato de força era, apenas, o ponto de partida para o golpe maior, ora em processo, a saber: a instauração, sem apoio na soberania popular, de um radical projeto neoliberal, antinacional, antipopular, recessivista, antitrabalhista e antidesenvolvimentista que presentemente se empenha, com lamentável sucesso, na desconstrução do País, mediante a desconstrução do Estado democrático voltado para o social, a desmontagem da ordem constitucional-jurídica, da economia nacional e dos direitos sociais, em nome dos interesses do capital financeiro, internacional e rentista. Como consequência das características ideológicas do ‘Projeto’, a crise, originalmente política, tende a transformar-se, perigosamente, em crise institucional com desfecho que nem as pitonisas de plantão podem prever.
Tratemos dessa ameaça.
São vários e robustos os indicadores dessa tendência que nos faz recordar os idos dos anos 1950 e 60, lembrando que a História não se repete, sabemos todos, a não ser a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. O que nos aguarda?
A fonte da crise, político-institucional, é a ilegitimidade do Poder, e para essa doença não há remédio fora da reconstrução da ordem político-constitucional pela única via conhecida pelo direito democrático, uma Constituinte. Para quando? Convocada por quem? Fruto de um novo pacto ou simplesmente produto da explosão político-social?
Um dos indicadores dessa crise é a desconstituição do Estado democrático com a transferência permanente de poderes a órgãos despossuídos de amparo na soberania popular, órgãos intermediários da burocracia estatal que se investem de um império sem base no ordenamento constitucional, transformam-se em ‘poderes’ autônomos e, como tal, são aqueles únicos que não observam limitações ao seu agir. Não conhecem o país nem se reconhecem nele. Habitam um Olimpo idealizado no espaço, uma peça de ficção sem compromisso com a realidade, reinando sobre a História, sobre os homens e sobre as coisas, sem vínculos com o país e seu destino. Vicejam no vácuo ensejado pela ilegitimidade ética e constitucional do novo ‘regime’, frágil pela origem, frágil pelo seu agir, frágil como súcia acossada pelos tribunais.
Não é trivial que de uma forma ou de outra sejam acusados de atos de improbidade o dito presidente da República e seis de seus ministros, além dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, e que, entre os senadores alvos de delação, se perfilem o líder do governo e o presidente da Comissão de Constituição e Justiça.
A ilegitimidade do poder derivado do golpe midiático-constitucional permitiu que, dentro da estrutura burocrática estatal, emergissem órgãos atuando como se fossem ‘poderes’ da República, que só conhece o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Mas, hoje, o procurador-geral da República se comporta como chefe de poder e o Poder Judiciário renuncia ao seu papel de guardião da Constituição para agredí-la em sucessivas decisões, e na mesma medida invade a competência legiferante, privativa do Congresso Nacional. Um juiz de piso não se peja de cometer arbitrariedades e atua, nos processos ao seu encargo, como promotor e delegado de polícia, e um ministro do Supremo e presidente do TSE se transforma em assessor privado de políticos que, mais dia menos dia, terá de julgar.
Veja-se o desplante e o escárnio: presidente do TSE reúne-se com o presidente da República que por ele será julgado na ação de impugnação da chapa Dilma-Temer, e encontra-se com presidentes de partidos governistas para discutir uma proposta de reforma constitucional que assegure a sobrevivência dos parlamentares acusados de corrupção. No TSE, vale-se de seu papel de presidente para tentar manipular o tribunal e livrar o presidente da República da iminente cassação de seu mandato, nesse e nos demais casos agindo sem disfarçar sua condição de ministro vinculado aos interesses do governo e do PSDB, interesses que se projetam em sua atividade judicante. Entre um convescote e outro, presente diariamente na mídia, Gilmar Mendes deita falações sobre processos em andamento no STF e no TSE.
Está virando regra a aproximação de ministros em jantares palacianos ou não com advogados e membros do Executivo e do Legislativo. O ministro Alexandre Moraes, ex-chefe de polícia de Geraldo Alckmin em São Paulo, deverá fazer crescer a lista dos comensais, pois num barco-garçoniére estacionado no Lago do Paranoá foi encontrar-se com senadores que no dia seguinte julgariam sua indicação para o STF. Mendes também nisso faz escola.
As diatribes do ministro Mendes, useiro e vezeiro em agredir o decoro e a isenção que se devem exigir de um magistrado, justificaram o ingresso, por juristas eminentes, junto ao Senado Federal, de dois pedidos de impeachment. As peças foram recusadas pelo eminente e notório senador Renan Calheiros, então presidente da Casa. A recusa, porém, faz sentido: o longevo senador por Alagoas é portador de cinco processos e será julgado no STF, por, entre outros, o ministro Gilmar Mendes.
Essas observações me foram despertadas pelo insólito duelo verbal da semana passada entre o ministro Gilmar Mendes e o procurador-geral da República, personagens centrais da lamentável, pobre e abastardada vida política nacional.
O ministro, em sessão da 2ª turma do STF – visivelmente abespinhado com a divulgação pela imprensa de nomes de próceres do PMDB e do PSDB constantes da ‘lista do Janot’ – acusa a PGR do crime de vazamento seletivo de depoimentos de delatores da Lava Jato lavrados nos autos sob sua guarda, e ainda a acusa de querer ‘passar por cima do STF’, transformando-o em um fantoche seu. Diz a certa altura: - “(…) vazamento de informações sob sigilo é ‘eufemismo para um crime’”; “Quem não tiver essa noção ... Não é digno de ocupar os cargos que porventura está a ocupar”; “A mídia não estaria divulgando nomes se esses nomes não tivessem sido fornecidos”; “Não tenho dúvidas de que aqui está narrado um crime. A Procuradoria não está acima da lei”; “a divulgação de dados sob sigilo é uma ‘forma de chantagem implícita ou explícita. É uma desmoralização da autoridade pública’” [FSP, 22/3/2017].
Em discurso na Escola do Ministério Público da União, em Brasília (no último 21 de março) o procurador-geral, após afirmar que as críticas à PGR vinham de “mentes ociosas e dadas a devaneios”  e por quem teve interesses contrariados pelas suas ações, acusa Gilmar Mendes de “decrepitude moral” e “disenteria verbal”. Por fim, em sua catilinária, trata, para repudiá-la, da promiscuidade de ministros com os palácios do poder e a imprensa, numa referência óbvia a Mendes:
“Procuramos nos distanciar dos banquetes palacianos. Fugimos dos círculos de comensais que cortejam desavergonhadamente o poder público. E repudiamos a relação promíscua com a imprensa.”
O STF escolheu fazer ‘ouvidos de mercador’ para o duelo de acusações, e assim, o melhor que se pode dizer é que todos têm razão em seus conceitos recíprocos.
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia


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