“Mataram um e deixaram outro amarrado para amanhã”



Nos anos 70 era comum ouvir essa frase de pessoas mais velhas e moradoras da cidade de Paulo Afonso na Bahia onde nasci. E foi ouvindo isto que me acostumei a ver que pessoas eram mortas, quase que diariamente, nas 60 casas. Construção de uma rua feita pelo Banco do Brasil e que viria a abrigar anos depois, uma das principais avenidas da cidade, a Contorno, hoje Hemetério de Carvalho.

Meu pai tinha construindo uma casa, onde viemos a morar por volta de 1973, perto daquelas construções. Elas ficaram abandonadas, sem terem seu termino durante um longo período. E era em algumas delas que muitas vezes foram encontrados corpos de homens e mulheres.


Paulo Afonso já foi uma cidade muito violenta. Nela já passaram alguns dos criminosos que ficaram famosos em páginas de jornais da Bahia. Todos eles vindo de outras cidades. Alguns em busca de se esconderem de crimes já praticados, outros tentando a sorte em empregos nas empresas que construíram as hidrelétricas do complexo Chesf – Companhia Hidrelétrica do São Francisco, mas que enveredaram pelo submundo.

Como a frente da casa do meu pai, Argemiro Roque, que fica até hoje na esquina da Rua Duque de Caxias, era uma mercearia e nela havia a venda de bebida alcoólica em dose, no bom estilo de Bodega, as conversas aconteciam mesmo no balcão ou na calçada, onde ficavam várias pessoas sentadas nos batentes a jogar conversa fora. E era assim que brincando, ou sentados ao lado daqueles adultos, íamos sabendo das coisas do dia a dia da Vila Poty.

Policiais também apareciam por lá para tomar uma pinga e se misturavam com as pessoas. Quando eles apareciam se fazia um silêncio arretado entre todos. Ninguém ousava puxar qualquer conversa. Alguns se levantavam e saiam do local para retornar só depois. Havia um clima de medo no ar.

Algumas das vezes eram dos policiais que sabíamos notícias do que acontecia na cidade. E foi em uma dessas que ouvimos a história, em tom jocoso, de policias que estavam acompanhando o Tenente Cariri, de que tinham encontrado um homem em uma “carroça de burra” com uma carrada de pedras e sentado nelas. O peso era tão grande que o animal não conseguia subir a ladeira. E o homem bateu forte com seu chicote, até que o animal arrimou.
Nesta hora da narração da história o semblante de Cariri ficou paralisado e mostrava raiva. O soldado disse que, o Tenente quando via a cena, pediu para parar o Jeep e ficou olhando. Quando o animal arriou por não conseguir arrastar a carga e o homem descer e começar a bater ainda mais, se ouviu o grito, “pare!”

Foi tão alto, que moradores saíram das suas casas para ver o que estava acontecendo. Cariri então teria perguntado se o dono do animal achava correto o que estava fazendo. E ouvi a resposta de que o bicho bruto era para isso mesmo, carregar peso.

Naquele momento, Cariri pediu para os policias ajudarem a retirar o animal da carroça e colocar os arreios no dono. E foi feito como ele pediu. Enquanto o homem assustado parecia não entender o que estava acontecendo. O tenente pegou o chicote, mandou soltarem a carroça e viu aquele corpo humano arriar com o peso. Foi quando se viu a imagem que até hoje é contada pelos mais velhos da cidade. O policial batia com tanta força no espinhaço deitado no chão, enquanto dizia, “levante, arraste...”. A cada chicotada que o homem levava, se ouvia gritos que ecoavam por várias ruas e pedidos de clamor para que se parasse aquela tortura.

Cariri deu uma olhada de lado e a história foi interrompida no mesmo instante. Ele gostava de ouvir músicas de Vicente Celestino, e sempre pedia para que fosse colocado o disco para ele quando aparecia para tomar uma Casca de Pau com seus comandados.

É verdade, mataram um e deixaram outro amarrado para amanhã. E a conversa como começou, terminou e aqueles homens foram embora. E os que ficaram, se olhavam uns aos outros até que se ouviu, “bota mais uma cachaça que é para espantar os coisa ruim”.

Ser criança em um mundo como esse me fez, já adulto, um contador de histórias. As vezes sento com os meus filhos e relembro algumas delas. E lembro quando a minha mãe, Regina Roque, colocava uma lona na calçada de nossa casa a noite e contava tantas outras. Ela falava de Reis e Rainhas, de sonhos que nunca viveu, mas que gostaria de ter vivido.

No sertão, as histórias vão e vem com o passar do tempo.

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