As noites quentes do sertão
baiano no final dos anos 70, todas as noites nos juntávamos na calçada da casa
dos meus pais. Era em torno da minha mãe que nos reuníamos naqueles dias
quentes de verão. Ela forrava com esteiras ou lonas o local onde ficávamos
sentados ou deitados. Muitas vezes eu ficava com a minha cabeça no colo dela,
ouvindo histórias de reis, príncipes e princesas, que só ela sabia contar. E ia
a mundos que só os pensamentos nos consegue levar.
Muitos dos filhos dos
vizinhos também vinham escutar aquelas histórias. E era assim que passamos as
nossas noites. Quando ela não podia, por força do trabalho nos atender nos
pedidos, nós arrumávamos brincadeiras e todos participávamos. Era de rouba a
bandeira. Colocávamos dois pedaços de paus, um em cada extremidade da rua
encima de um monte de terra, íamos tirando aos poucos, até o mastro cair. Era o
momento de pegar e correr antes de ser espancado pelo time contrário. Era uma
festa! Ou de garrafão. Fazíamos um quadrado bem grande com duas entradas no
sentido horizontal. Uma em cada lado. Uma pessoal tinha que alcançar outra e
tocar. Dentro se podia ficar com os dois pés. Fora, com um pé só. Se pego, a
porrada era grande. E éramos felizes assim.
Minha mãe contava que um Rei
tinha uma linda filha. Ela foi transformada, por inveja, em uma bela gaivota. O
mago, um dia ao encontrar com ela no corredor do palácio, colocou um alfinete,
bem pequenininho em sua cabeça, a enfeitiçando durante muito tempo. Ele parecia
querer acariciar, mas o intuito era a transformar em algo que pudesse ser
abatido por qualquer pessoa.
Descoberto, o feiticeiro foi
preso e levado a masmorra. E lá está até hoje.
Avisado do acontecido o rei saiu
a procura de sua filha pelo palácio. Não a encontrando, ele então autorizou que
se fizessem buscar por todo o reino. E nada disso teve êxito. Foram alguns dos
garotos que avistaram aquele ave e saíram em perseguição daquela linda gaivota.
Eles não sabiam que era a bela princesa que voava pelos jardins do palácio e se
escondia de todos entre as arvores mais próximas. E por isso a importunavam.
Se passaram muitos dias. E o
rei já desgostoso da vida, mandou que fosse publicado em todas as aldeias um
cartaz oferecendo uma recompensa para quem soubesse do paradeiro de sua filha.
E em uma tarde de chuva, um jovem lavrador ia passando pela taberna de sua
aldeia, quando viu aquele cartaz com o desenho do rosto da princesa. Ele o
arrancou e foi direto para sua casa. Lá chegando, falou para sua mãe que iria
procurar aquela jovem. Ele não queria o dinheiro, e sim, encontrar tão belo
rosto. Sua mãe riu, e fez pouco caso. O jovem era desleixado, tinha a barba
sempre por fazer, nunca ligou para as roupas que vestia, muito menos se
importou com riquezas. Ela acreditava que, ele não teria a menor condição de ao
encontrar, e se por acaso viesse a acontecer, o que ela definitivamente não
acreditava, seria improvável que conseguisse reverter o feitiço.
De vários lugares vieram
príncipes em busca de encontrar aquela gaivota e de poder reverter o feitiço. A
cada dia chegavam ricos e mercadores em busca da gaivota. Uns traziam gaiolas,
outros traziam alçapões, outros espalhavam comidas pelos cantos do reino, mas
nada da bela gaivota aparecer.
Ao longe, a princesa no
corpo de gaivota, via cada movimento que era feito por tantos ricos. Mas nem um
deles a chamava a atenção. Ela tinha medo que depois de aprisionada, não
pudesse mais voar e viver livre, como era no palácio de seu pai. A liberdade
era, para ela, como o oxigênio que a fazia viver. Estar aprisionada, seria
decretar a sua morte.
Um lindo rei, viu de longe
aquele corpo branco em uma arvore perto do lago. Ele então se aproximou
devagarinho, e falou com a gaivota.
- Eu não estou aqui para lhe
machucar. Vim porque seu pai prometeu que quem conseguisse reverter o feitiço,
a teria como esposa. E de tão formosa que és, eu me aventurei pelas terras
áridas do deserto, em busca desse lindo rosto.
A gaivota ouviu distante as
palavras do príncipe e teve a certeza de que ele não era a pessoa certa para
mudar o que lhe acontecerá. O feitiço só se reverteria, se um verdadeiro amor a
encontrasse. Não era a riqueza, não eram os presentes, não era um belo
príncipe, não era algo assim que mudaria. Ela sabia que, além de tudo o que lhe
pudesse proporcionar, o escolhido deveria ter o mais sublime sentimento de amor
em seu peito. E naqueles ela ainda não encontrará. Por isso, permaneceria
distante de todos. Vivendo isolada, com o medo se ser aprisionada.
Na tarde daquele domingo,
apareceu no palácio José. Era aquele humilde servo do rei. Estava cansado da
viagem que fizera. Foi direto para a mesa onde estava servida a comida. Se
fartou de tudo o que pode. Até não mais aguentar comer. Estava satisfeito. E
pensava dali não mais sair. Tinha comida farta, até que a princesa pudesse ser
encontrada. Passados três dias, sem que do palácio se ausentasse. O rei,
informado da situação, foi ao seu encontro. Lá chegando, viu alguém mal
vestido, com uma maça na mão direita, sentado em um banco na cabeceira daquela
mesa grande.
- de onde vem Príncipe? Que
reino deixaste para trás para vir em busca de salvar a minha amada filha? Que
riquezas tem para oferecer-lhe, caso consigas a encontrar e traze-la de volta
para casa?
José, parou a mordida na
maça que estava dando. Ficou de joelhos e respondeu ao rei.
- Bondoso rei. Eu não tenho
nenhum reinado. Terras só quem tem é Vossa Alteza, e eu, junto com minha mãe
cultivamos feijão. Todo fim de safra, lá passa o cobrador de impostos e nós
pagamos o que lhe devemos. Eu sou um plebeu, que após ver o cartaz em minha
aldeia, resolvi vir, também, procurar pela princesa.
O rei, não gostou daquela
situação e mandou que sua guarda o retirasse do palácio. José foi colocado para
fora, enquanto se ouvia risos e gargalhadas dentro do salão. Já fora, ele olhou
para o rei que acompanhará aquela cena e disse:
- Meu rei, no cartaz não
falava que eu teria que ser príncipe, ter terras ou riquezas. E de tão lindo
que vi a princesa, tive a certeza de que meu lugar era aqui para procura-la. Do
seu reino não quero nada. De suas riquezas, não me apossarei de um grão de
ouro. Mas tenha a certeza, meu rei, se a sua filha eu encontrar, a trarei de
volta para o senhor.
Com aquelas palavras, o rei
sentiu vergonha em seu rosto. Olhou para o chão e se virou de costas, entrando
no salão. Lá se encontravam ricos, nobres e muito luxo. Mas o rei viu naquele
homem, algo que dentro do palácio não existia.
José, olhou para o palácio
que antes entrará e que agora era expulso. Buscou um abrigo para aquela noite e
decidiu que pela manhã, partiria em busca da gaivota.
Ao acordar, bebeu um copo de
agua do pote da estalagem. Encontrou com alguns garotos que brincavam na rua.
- Vocês sabem onde posso
encontrar a princesa em forma de gaivota?
- Claro que sabemos.
Responde o maiorzinho.
- Podem me indicar onde a
encontro? Hoje quero falar com ela.
Os garotos saíram com ele e
o levaram até os fundos do palácio. Era de lá que a gaivota todos os dias
recebia comida para se alimentar.
- Vamos espera, que ela
aparece já! Disse o menino.
Eles ficaram ali por mais de
uma hora. E de repente, como em um passe de mágica, aquela linda gaivota sentou
na grande arvore do jardim. Uma criada colocou uma grande bandeja com frutas
para aquela gaivota. Antes mesmo de a princesa voar em seu corpo de pássaro,
José foi até a bandeja e pegou uma maça para comer. Ele estava desde a tarde do
dia anterior sem se alimentar. A gaivota voou e o tentou acertar na cabeça. Ela
estava tentando defender seu alimento.
José sorriu e perguntou:
- Princesa, não para
dividirmos o alimento? Desde ontem que nada como e estou com muita fome em meu
estomago.
A gaivota sentada no galho
da arvore ficou olhando aquele jovem se alimentar. Ele já ia pegando uma
laranja, quando recebeu uma bicada na cabeça. Era a gaivota novamente a
defender seu alimento. Ele ficou ali sentado. Olhando para ela, e ela olhando
para ele.
- Princesa, não me leve a
mal, mas como eu poderia lhe ajudar. Me diga como, que farei de grande agrado.
Não quero nada do seu reino. Vim aqui porque a queria ver. Vi seu rosto no
cartaz, e nunca vi tão lindo rosto. Nada espero do Rei, nem de sua riqueza. Só
quero ter o prazer, de um pia poder dizer, que vi o seu rosto tão lindo.
Como a gaivota não o
respondeu. José se levantou e se afastou, para que ela pudesse se alimentar.
De longe ele a olhava.
Quando ela terminou voou para distante. E ele retornou para perto do palácio.
No dia seguinte ele não
precisou mais da ajuda das crianças. Acordou e foi direto ao local onde era
colocado o alimento. Ficou distante olhando. Viu quando foi deixado. Foi até lá
e sentou perto. Ficou olhando para a comida. Não pegou nada dessa vez. A
gaivota que chegará pouco antes ficou a olhar aquela sena. Não entendia como
ele não teria pego nada. Ele levando e já ia embora. Foi quando sentiu o vento
em seu ombro. A gaivota senta no esquerdo. Passou sua cabeça no rosto de José.
Ele sorriu. A pegou e sentou ao lado da bandeja. Cortou frutas e a alimentou no
bico. Já farta, ao ver José vindo com mais alimento, a gaivota recusou. Era a
vez dele. Mas ele não quis se alimentar. Ela, com seu bico, empurrava o
alimento para ele. Mas José não queria.
- Princesa, hoje quando
sentei aqui, me lembrei de minha mãe, que está em casa sem alimentos para
saciar a sua fome. Não é justo que eu possa me fartar, enquanto ela sente fome.
Não é justo que poucas pessoas possam ter muito para se alimentar, enquanto
milhões passam fome em seu reino. Eu vim aqui para encontrar tão bela flor, mas
encontrei tamanha contradição. Voltarei para o meu canto. É lá onde eu devo
ficar.
Naquele instante, uma
lagrima rolou do olho da gaivota. Ela rosou sua cabeça novamente no rosto de
José, que sentiu algo o incomodar. Ele a pegou, passou colocou-a no chão,
passou sua mão com cuidado na cabeça da gaivota para sentir o que o espetava.
Com os dedos procurou algo e encontrou um pequenino alfinete que a incomodava
tanto. José o retirou, e viu surgir em sua frente uma linda mulher, como nunca
virá antes. A mais bela entre as belas. Mais linda do que ele tinha visto no
cartaz. Os dois ficaram de pé. Ela o abraçou com carinho e o agradeceu. Beijou
o seu rosto. Foi quando a serva, que vinha buscar a bandeja, a viu e gritou.
- A princesa está viva, Ela
voltou.
Correram todos ao seu
encontro. O rei a abraçou. Levou a para dentro do palácio a mandou que fosse
feito uma grande festa para comemorar o seu retorno. José ficará fora do
palácio. No tumulto foi barrado de entrar. Como todos os plebeus, ficou de fora
da festa que o rei ordenará dá.
Já dentro do palácio, o rei
perguntou a ela:
- Quem destes conseguiu reverter
o feitiço minha filha? Ela olhou para todos os lados e não viu aquele rosto que
a ajudará.
- Nenhum desses meu pai!
O rei ficou confuso. Se
todos os príncipes estavam ali, quem então seria o felizardo que teria a honra
de casar com sua filha e juntarem os reinos.
- Meu pai, o príncipe que
retirou o feitiço de mim. Que me trouxe de volta para casa novamente para
conviver com todos vocês, não tem nenhuma riqueza, não mora em palácios. Na
verdade meu rei, ele tem fome, fome de comida, fome de liberdade, tem amor no
coração, como nunca visto antes em uma pessoa. O príncipe a quem o senhor irá
conceder a minha mão, reponde pelo nome de José, e é morador de uma vila em
nosso reino.
O rei, quase cai, mas se
apoiou na cadeira do trono e ficou calado, sem saber o que dizer. Passado
aquele instante de surpresa.
- Que tragam o homem que
terá a mão da minha filha.
Procuraram pelo palácio.
Procuraram pela vila do palácio. E nada de encontrar José. Ele foi embora,
assim como chegou ao palácio. Livre como uma gaivota a voar.
A princesa, chorou, pois não
conseguiu rever o príncipe que ela viu a mais linda forma de amor em seu
coração. Ela prometeu que um dia, o iria encontrar. Mesmo que todo o tempo do
mundo levasse, o seu amor, ela iria encontrar.
E foi assim que minha mãe
terminava essa história. Todas as vezes que contava para aquele bando de
crianças sentados na calçada da minha casa na Rua Duque de Caxias, em Paulo
Afonso, lá na Bahia.
Dimas Roque.
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