— Pete Hegseth, secretário de Defesa dos EUA, em discurso no US Army War College (23/04/2025)
A agressão dos EUA ao Brasil, interrompendo uma negociação que apenas se iniciava — por iniciativa nossa, aliás —, vem sendo recebida pelo que ela é: intempestiva e isenta de qualquer sorte de causalidade. Em síntese, essencialmente ilegítima, como toda intervenção estrangeira na ordem política de um país independente. Seu caráter é ostensivamente político (a aparência econômica do tarifaço é apenas um disfarce) e se apresenta como insólita punição a um país soberano.
O que o Judiciário brasileiro fez foi simplesmente o que a Justiça americana, fugindo ao seu dever, se esquivou de fazer quando Donald Trump, em 2021, tentou impedir a posse de seu sucessor.
Toda essa vilania, quase uma declaração de guerra, caracterizada pelo virtual bloqueio de nossas exportações, decorre do fato de o cabeça da intentona frustrada, Jair Messias Bolsonaro, ser, por artes e manobras ainda a serem desvendadas, um apadrinhado do atual locatário da Casa Branca. Sobre a agressão, Trump — o candidato a coiteiro — acrescenta chantagem aviltante: se o Brasil deixar em paz seu protegido, o império poderá rever a insídia da majoração unilateral das tarifas, imposta ao arrepio de todos os procedimentos do multilateralismo assassinado, das regras do livre comércio, das normas da OMC e, enfim, do que se conhece como direito internacional.
Em suma, no contrapelo de tudo o que deveriam ser as normas e práticas diplomáticas de duas nações que mantêm relações há mais de duzentos anos.
É evidente que os anunciados prejuízos à economia brasileira, com a imposição unilateral dessas tarifas, abalarão nosso balanço de pagamentos, com a queda inevitável da receita de exportações; atingirão o lucro e a acumulação de capital de ponderáveis setores da economia (atingindo tanto a indústria quanto o agronegócio), apenando de forma evidentemente distinta grandes, médios e pequenos empresários — mas atingindo, acima de todos, os trabalhadores, que pagarão a conta com o desemprego, que já alcança 8,5 milhões de brasileiros, ao lado de 38 milhões de desgarrados do sistema, que tentam sobreviver na informalidade.
Os custos econômicos — como o impacto sobre o real, a pressão inflacionária, a falência de pequenas e médias empresas — são efeitos previsíveis e, em alguns casos e nalguma medida, minimizáveis (a eles o ministro da Fazenda já disse estar atento). E conhecidos são os largos recursos do capital. Insanável é o custo social.
Mas isto ainda não é tudo, nada obstante sua gravidade, pois a grande agressão, a ofensa inominável, é a que mira nossa dignidade, impondo uma “negociação” de índole mafiosa, cujo preço cobra a renúncia da dignidade nacional. E esta não tem meio-termo.
Este aspecto, fulcral, foi reconhecido pelo povo brasileiro — e mesmo pela imprensa mainstream —, retirando o governo das cordas e ensejando à esquerda, hoje sem palavra de ordem, a retomada da bandeira do nacionalismo — tão viva, um pouco lá atrás, na campanha pelo monopólio estatal do petróleo. A defesa da soberania nacional, que o envilecido Estadão reduz a “populismo” lulista, fala às grandes massas, hoje arredias das ruas.
O bom senso, porém, não é unanimidade, pois muitos intelectuais e observadores do cenário internacional se revelam assustados, surpresos, tanto com o grau de violência do ataque quanto com o fato de essa violência atingir relações de mais de dois séculos entre “duas sociedades irmãs”.
A dificuldade de ultrapassar a aparência para conhecer a essência das coisas, porém, não para aí, pois quase toda a gente distingue o Estado norte-americano de seu atual presidente, sagrando aquele para dedicar toda a justa desaprovação a Trump — como no passado recente, quando, ao reduzir os crimes do nazismo a Hitler, se procurava ignorar o papel do povo alemão nos crimes de guerra que não podia desconhecer; como agora, quando a manipulação dos meios de comunicação reduz o horror do genocídio dos palestinos à obsessão sionista de Benjamin Netanyahu.
Ora, Trump é tão americano quanto a torta de maçã, o Mickey, o Pato Donald, o macarthismo a segregação racial e os linchamentos. E é preciso lembrar que o magnata, como seu pastiche brasileiro, não enganou ninguém — muito menos a sociedade estadunidense. Tudo o que faz e desfaz foi anunciado na campanha eleitoral que o consagrou, de forma inquestionável. Com este respaldo, pode governar em nome dos menos de 1% que controlam o país; está a serviço de seus próprios interesses empresariais e de seus sócios, dos interesses do capital financeiro e das big techs. E conta com a cumplicidade do Congresso, a parcialidade da Suprema Corte, a boa vontade de quase toda a imprensa e, até, a passividade do mundo acadêmico. Não é pouco.
Sua aparente loucura está permeada de lógica. Trump choca,
mas não inova. Como afetar surpresa olhando para a história de seu país?
Não é científico desprezar o papel do indivíduo na história: ele está sempre presente, condicionado, porém, pelas suas circunstâncias. A presença do rico coletivo de forças econômicas e políticas atuantes no processo social supera em muito o poder do voluntarismo.
Ao longo dos séculos XX e XXI, os EUA, governados por democratas ou republicanos, se envolveram em um número incontável de intervenções externas, diretas e indiretas, em mais de 80 países. Do criminoso e persistente bloqueio a Cuba ao apoio a todas as ditaduras, a política externa dos EUA para a América Latina se construiu sob a lógica da doutrina do big stick (“Fale com suavidade e carregue um porrete — e irá longe”), cunhada por Theodore Roosevelt (1901–1909).
Esta é a natureza do imperialismo, assim exposta por ele mesmo numa saga didática de que seremos devedores. Ou já nos esquecemos da rapina de que foram vítimas os Estados Unidos Mexicanos? Ou que, no século passado, numa guerra já perdida pelo Japão, os EUA, presididos pelo democrata Harry Truman, lançaram duas bombas atômicas sobre as populações civis de Hiroshima e Nagasaki, matando cerca de 300 mil pessoas? O rol, só a partir daí, é extenso e não cabe neste espaço sua resenha: basta lembrar que, na Guerra da Coreia, contam-se entre mortos e desaparecidos três milhões de civis (10% da população da península); e, na invasão do Vietnã, algo entre 1,5 e 2 milhões. E são incontáveis as intervenções dos marines e de agentes da CIA desmontando projetos de democracia na América Latina e no mundo, ou sustentando ditaduras, ou assassinando adversários mundo afora, como o congolês Patrice Lumumba.
Nada diferente tem sido o relacionamento com nosso país, facetado pela subserviência das chamadas elites do mundo econômico e do mundo político, de que é exemplo icônico a frase cunhada pelo general Juraci Magalhães, na condição de embaixador do Brasil em Washington: “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil.” Vira-latismo que apenas consagrava a política de alinhamento automático, acentuada com a ditadura militar de 1º de abril, mas que vinha marcando a República desde seu início, com variações apenas de nuances.
Desde, principalmente, a Segunda Guerra Mundial, os EUA orientam doutrinariamente as Forças Armadas residentes no Brasil e decidem sobre seu armamento. Não invadiram o território nacional por desnecessário, mas participaram de todos os golpes de Estado desde 1945 (inclusive da conspiração que levou ao suicídio de Getúlio Vargas, em 1954) e, por último, na implantação da ditadura militar (1964–1985), inclusive emprestando especialistas em tortura, como o capitão Charles Rodney Chandler, adido militar no consulado norte-americano em São Paulo. Em 1968, foi morto pela guerrilha de esquerda.
Nada obstante a preeminência dos interesses dos EUA, as relações dos dois países já conheceram rusgas diplomáticas, principalmente naquelas poucas oportunidades em que ousamos a defesa de nossa soberania — desde a exploração nativa do petróleo (contra as pressões da Standard Oil) aos projetos mais recentes de autonomia da produção de energia nuclear e ao programa espacial. A lista é extensa.
O Departamento de Estado e o Pentágono jamais aceitaram de bom grado a liderança que o Brasil exerce na América do Sul. Para o imperialismo, são intoleráveis nossos ensaios de política externa independente, esboçados sobretudo a partir do governo Jânio Quadros, para se acentuarem no mandato de João Goulart. Frustrados no impedimento do vice-presidente, determinaram sua deposição — e o que a ela se seguiu. Findos os tempos de festa ensejados pelo neoliberalismo (Collor–FHC), foram outra vez surpreendidos com a política “ativa e altiva” dos governos de Lula e Dilma, que ressurge agora, após os tristes anos de Temer–Bolsonaro.
No episódio atual, a carta-provocação ataca o Brasil e suas instituições para defender os interesses das big techs (incomodadas com os limites que o STF pretende impor a seus desmandos no Brasil) e das grandes operadoras de crédito, que veem seus lucros diminuírem com a rápida disseminação do pix. Isto tudo num contexto de reordenamento do poder mundial — marcado pela ascensão da China, com quem o Brasil mais e mais estreita relações —, em que o império declinante não se dispõe a fazer concessões. Ora, para Biden ou para Obama é intolerável nosso papel no BRICS, como para Kennedy e Lyndon Johson era intolerável nosso discurso em defesa da autodeterminação dos povos.
Os EUA são um império declinante, é certo, mas ainda muito poderoso, e com forças para infligir estragos incalculáveis. Um tigre ferido é perigoso.
Os desdobramentos do quadro ainda não podem ser desenhados, mas já é possível ver que as nuvens de hoje não prometem bonança no curto ou médio prazos. Estamos diante da alimentação de uma crise que a tudo pode levar, e dela não seremos apenas atores menores, pois dificilmente deixaremos de compartilhar suas consequências — fragilizados que estamos pelo abandono, por décadas, da ideia de soberania.
No caso imediato — o contencioso político com viés tarifário — o primeiro caminho é a negociação que, nada obstante nossas limitações, haverá de ser altiva, porque não se concilia com a dignidade. O governo está correto ao requerer sua retomada, sem, todavia, alienar a alternativa da reciprocidade seletiva. Mas aí, à pusilanimidade do Congresso e de sua maioria sem coluna vertebral, soma-se a sabujice do grande empresariado ao pleitear, de alto e bom som, desde logo, antes mesmo que as partes se sentem à mesa, que o Brasil descarte a única arma de que dispõe: a alternativa da reciprocidade na guerrilha tarifária.
Soberania não é uma abstração cívico-poética. Reclama o direito concreto de escolher nossas alianças, proteger nossa economia, empregar nosso povo, cultivar nossas terras e exportar nossos produtos. É o direito de decidir, sem medo de retaliação. Nem é muito, nem é pouco.
O sistema governante — aquele que controla o poder, independentemente de quem esteja hospedado no Palácio da Alvorada ou ocupando as cadeiras do Congresso — dá sinais de que já rastreou o terreno e pretende jogar ao mar a carga hoje inconveniente, construindo uma nova maioria política, afastando-se do neofascismo (o bolsonarismo indigesto e suas adjacências), fator de turbulência e, portanto, de incerteza para os negócios. Essa manobra pode implicar composição com o centro, na perspectiva de estabilidade política, à qual não será indiferente o governo. Lula pode mesmo ser seu fiador, pode mesmo cumprir o papel de elo aglutinador — aquele que mais fala à sua alma.
A sinuca de bico será o desafio que as circunstâncias imporão às esquerdas. Se não podem se opor a um arranjo que desloca a extrema-direita, hoje em ascensão no mundo e no Brasil, terão de, mais uma vez, adiar a expectativa de avanço político.
***
Adeus a Preta Gil — Após longa e penosa batalha contra o
câncer, Preta Maria Gadelha Gil Moreira encerrou, no último dia 20/07, o
"caminho inevitável para a morte" que seu pai cantou em anos idos. Já
no batismo, Preta recebera a missão da ousadia — neste país onde é comum nomear
como Branca até mesmo meninas negras como ela. Com irreverência e altivez, ela
soube enfrentar, ao longo da curta trajetória, o machismo, o racismo, a
gordofobia, a boçalidade do fascismo ressurreto. Fica a lembrança do seu riso,
da sua alegria, e o desejo de que seus familiares e amigos nela encontrem
alívio para a dor que a saudade impõe aos que se aventuram a amar. Ao camarada
Gilberto Gil, aquele abraço.
Por: Roberto Amaral.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
Nenhum comentário:
Postar um comentário