Um pouco sobre Jacques Rousseau.

A maioria das biografias de Jean-Jacques Rousseau nunca deixam de lembrar que o grande filósofo suíço, antes de tornar-se conhecido pelas suas ideias revolucionárias, viveu experiências pessoais intrigantes que, de certa forma, explicam sua genialidade e o enorme vácuo existente entre seu pensamento e a ordem social do seu tempo. Rousseau nunca se adaptou ao mundo restrito dos burgos do século XVIII, ainda cercado por muros e regras medievais. Gostava da vida natural, dos bosques e sempre tinha problemas quando retornava ao convívio da urbis. Era nessas fugas que saneava suas tormentas íntimas e encontrava paz de espírito para desenhar suas utopias. Numa delas Rousseau decide vagar pelo velho continente, como já fizera inúmeras vezes, desde a juventude, e cumprir sua conhecida missão e propósito de clarificação das mentes. Antes, desfaz a família, instável e incerta, põe os filhos num orfanato e parte para mundo. Angustiado pelos erros e remorsos, caminha sem rumo definido numa pequena estrada entre Paris e um vilarejo dos seus arredores. A paisagem silenciosa e bucólica convidam-no ao descanso. Dorme sob a sombra de uma árvore e ali permanece durante alguns minutos até cair em sono profundo, como tivesse sido arrebatado para um universo desconhecido. Não era a primeira vez. Quando desperta, Rousseau já não é mais o mesmo. Sua fisionomia não lembra mais o jovem rebelde que fugia do burgo e era repreendido pelo mestre ao deparar-se com a portas trancadas. Era agora o adulto ciente das causas e efeitos das suas ações. De repente é tomado por uma emoção muito forte que oprime seu peito e alguns segundo depois explode em lágrimas. Também não era a primeira vez que isso ocorria. Rousseau chora como se fosse uma criança que se despede dos pais e de casa para nunca mais voltar. O rápido sono havia matado o jovem Rousseau e despertado nele o homem que iria subverter a ordem do mundo, pela convicção profunda da liberdade e do desimpedimento. A partir daquele instante o mundo também nunca mais seria o mesmo. O sono e as lágrimas do filósofo sob a árvore havia provocado um parto de ideias que mudariam definitivamente a ideia do que é ser humano e do conviver em sociedade. As lágrimas e sua libertação pessoal seriam também o alto preço pago pela autonomia do Homem e a futura auto-determinação dos povos e nações que hoje desfrutamos. Era o advento da luz sobre as trevas, mais uma vez, não como uma revelação místico-religiosa, mas como consciência e consequência política irreversíveis. Com Rousseau, a experiência grega e romana de cidadania, bem como a ideia da predestinação judaico-cristã, adquirem dimensões mais amplas. Nasce ali, com maior propriedade filosófica a ideia o direito de ser livre, naturalmente livre, sem o lastro das culturas, da dependência pessoal ou obrigação dogmática. Os adultos agora deveriam ser livres, como é livre o espírito da criança, e nunca deveriam se submeter ao medo que os fracos sempre tiveram diante dos fortes. Ali havia sido descoberta e anunciada uma outra força, ou melhor ainda: um outro de tipo de força, a força da liberdade. Rousseau acordou, chorou e ressurgiu em si sob a árvore da Natureza. Desde aquela tarde, de três séculos atrás, o mundo se tornou Rousseau. E todos nós continuamos a ser a imagem e a semelhança intelectual desse filósofo, até que surja um novo tempo, até que nasça um outro Rousseau.

Texto de Marilena Chaui sobre Roousseau.

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