
A operação italiana terminou
numa farsa – a eleição de Berlusconi; a crise política brasileira rapidamente
transita para uma crise institucional que pode cobrar alto preço à democracia
representativa.
Vale a pena, pois, revisitar
o texto de nosso super-herói.
Escrevendo dez anos antes
dos feitos curitibanos, Sérgio Moro, já então praticamente descrevia o quadro brasileiro
de nossos dias ao anunciar as condições necessárias para o sucesso da
‘Operação’, e a primeira delas é a crise política alimentada pela crise
econômica, como a que viveu a Itália entre o fim dos anos 80 e os anos 90, e a
que vivemos a partir de 2013. Essas duas contingências retroalimentam e,
administradas, produzem a “deslegitimação do sistema político”, com seu
inevitável rol de sequelas, como a queda do debate ideológico, como o colapso
da vida partidária. Na Itália, essas disfunções é que teriam produzido o que o
juiz chama de “círculo virtuoso”, com a crise política ensejando a “maior
legitimação da magistratura”, que, no Brasil se alça, por intermédio do Poder
Judiciário à inconstitucional condição de Poder Moderador pairando sobre os
demais poderes, mesmo neles intervindo, exorbitando de suas atribuições e
judicializando a política.
A ‘Operação’ é projeto
político carente de articulação política que se dá mediante a aliança da
magistratura (no caso brasileiro a articulação Judiciário-MPF-Polícia federal)
com a mídia, que, por seu turno, manipula o apoio da sociedade, pois, a
conquista da opinião pública é condição necessária para o bom êxito da ação
policial-judicial. É ingênuo pensar – diz-nos o juiz curitibano — “que
processos criminais contra poderosos possam ser conduzidos normalmente”.
Esse sistema de elos faz
surgir, diz-nos, uma “nova magistratura” que vai colher sua legitimidade, não
mais na Constituição, mas diretamente na opinião pública, que, entre nós, é
apenas opinião publicada, manipulada por sistema de comunicação que no plano
empresarial é oligopolista e no plano ideológico um monopólio reacionário. Essa
nova fonte de legitimidade, alimentada fora do corpo legal, levada ao limite,
legitimaria decisões fora da lei, por estar acima da fonte constitucional, o
que justificaria, já falou entre nós um Tribunal regional federal, a
legitimidade de decisões excepcionais em “tempos excepcionais”,
excepcionalidade essa decidida, por óbvio, ao talante do julgador. Estamos em
face de limites preciosos pois não muito distantes de um populismo judicial
que, se não contido, tudo terá a lembrar-nos o Volksgerichtshof, o Tribunal
Popular da Alemanha nazista.
A deslegitimação da
política, ponha-se o que se quiser em seu lugar, é o caminho mais curto para a
derrocada do edifício democrático que, entre nós, já dá sinais de abalo com o
protagonismo político de ministros, isoladamente, e do próprio Judiciário, como
coletivo, quase sempre implicando severos danos à independência e separação dos
poderes, e, como sempre, agredindo a ordem constitucional.
Moro destaca como fator
essencial para o sucesso da mani pulite as prisões ‘pré-julgamento’,
ensejadoras da coação sem a qual a política de delações (ou confissões),
decisiva, não seria possível. O investigado, preso, é levado a colaborar,
informado, falsamente, pela imprensa – ator decisivo em todo o processo, na
Itália como no Brasil –, de que teria sido delatado em confissão de um
comparsa:
“A estratégia de
investigação adotada desde o início do inquérito submetia os suspeitos à
pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que
outros já teriam confessado e levantando a perspectiva de permanência na prisão
pelo menos pelo período de custódia preventiva no caso de manutenção do
silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no caso de uma confissão (uma
situação análoga do arquétipo do famoso ‘dilema do prisioneiro’). Além do mais,
havia a disseminação de informações sobre uma corrente de confissões ocorrendo
atrás das portas fechadas dos gabinetes dos magistrados. Para um prisioneiro, a
confissão pode aparentar ser a decisão mais conveniente quando outros acusados
em potencial já confessaram ou quando ele desconhece o que os outros fizeram e
for do seu interesse precedê-los. Isolamento na prisão era necessário para
prevenir que suspeitos soubessem da confissão de outros: dessa forma, acordos
da espécie ‘eu não vou falar se você também não’ não eram mais uma
possibilidade”.
Os frutos da mani pulite
começam a surgir quando, em 1992, preso, Mário Chiesa, dirigente do PSI,
iniciou sua série de confissões/delações, abrindo espaço para novas prisões e
confissões, estimulado pelo anúncio de falsas delações. Justifica Moro: “Se as
leis forem justas e democráticas não há como condenar moralmente a delação”,
que se converte no cerne da operação: como os crimes contra a Administração
Pública são cometidos às ocultas, “torna-se difícil desvelá-los sem a
colaboração de um participante”.
Em diversos momentos, Moro
defende a prisão como meio de instrução do inquérito, medida que se antecipa ao
julgamento, pois, diz-nos, a delação premiada só é possível se o acusado se
encontra sob coação:
“Por certo, a confissão ou
delação premiada torna-se uma boa alternativa para o investigado apenas quando
este se encontrar em uma situação difícil”.
Assim, a pena, a mais grave
das penas, que é aquela restritiva da liberdade, deixa de ser a conclusão do
inquérito e do devido processo, para tornar-se seu vestibular.
A crise italiana fez brotar
uma nova magistratura composta de novos agentes chamados de giudici ragazzii
(jovens juízes) cujo grande mérito, palavras de Moro, é não professarem
“qualquer senso de deferência em relação ao poder político”.
O juiz nos fala do ‘largo
uso da imprensa’ e da política de vazamento selecionado, aqui um maná nas mãos
de jovens juízes e procuradores imaturos em busca de protagonismo e um minuto
que seja de fama, tanto quanto de ministros e ministras que não estão sabendo
envelhecer.
Para desgosto dos acusados,
diz ele, “(…) A investigação da mani pulite vazava como uma peneira. Tão logo
alguém era preso, detalhes eram veiculados no L’Expresso, no La República e
outros jornais e revistas simpatizantes. Apesar de não existir nenhuma sugestão
de que algum dos procuradores mais envolvidos com a investigação teria
deliberadamente alimentado a imprensa com informações, os vazamentos serviram a
um propósito útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse do
público elevado e os líderes partidários na defensiva”.
A publicidade – levada entre
nós a extremos de irresponsabilidade e sensacionalismo – é exaltada por Moro,
ainda quando aumenta o risco de uma acusação falsa, ou quando serve a
pantomimas como aquela dos procuradores da chamada força-tarefa da Lava-jato,
em Curitiba. A publicidade, manipulada, transforma-se em instrumento crucial
para a eficácia das investigações. Seu objetivo não é a informação pública,
primeira razão da imprensa na democracia, mas influir no procedimento policial,
no qual se confundem, negando os princípios mais elementares do direito penal,
juiz, investigador e promotor:
“A publicidade conferida às
investigações teve [na Itália] o mérito salutar de alertar os investigados em
potencial [seu objetivo, portanto, não era informar a opinião pública] sobre o
aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas
confissões e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública
às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem
o trabalho dos magistrados”.
Falhando o inquérito, mesmo
o inquérito assim manobrado, falhando o julgamento ou mesmo a ele se
antecipando, restarão, graças à publicidade e nela o papel da imprensa, o
julgamento e a inevitável condenação pela opinião pública. “Nessa perspectiva a
opinião pode constituir um salutar substitutivo (da punição judicial), tendo
condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos
corruptos, condenando-os ao ostracismo” como condenaram – a imprensa e a
opinião pública –, faz poucos anos, em São Paulo, os donos da Escola Base, acusados
de crimes jamais cometidos.
Será que o combate à
corrupção e à impunidade não poderia dar-se nos marcos do Estado de direito
democrático, ou seja, sem tomar sua derruição como sua condição de
possibilidade?
Roberto Amaral é escritor e
ex-ministro de Ciência e Tecnologia.
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