— Marcelo Godoy, O Estado de S. Paulo (26/03/2025)
O país assiste a um dos momentos mais importantes da
construção republicana, mas dele parece ausente a nação, mal informada pela
grande imprensa — que reduz o fato político essencial a questiúnculas jurídicas
— e pelos partidos, desmobilizados e desmobilizantes, perigosamente desafeitos
à ação. Enquanto o dever coletivo seria esclarecer a opinião pública, carente
de debate e presa das milícias digitais, a esquerda — estranho destino! —
conforma-se como plateia cansada. Cruzamos os braços e nos quedamos em cômoda
tranquilidade, porque delegamos nossos destinos de nação e país ao STF.
O julgamento dos principais criminosos do governo passado e
da intentona de 8 de janeiro de 2023 é ato político na sua melhor acepção: diz,
finalmente — e hosanas seja de uma vez por todas! —, que o atentado contra as
instituições democráticas é crime e que seus autores devem ser punidos com o
máximo rigor da lei, sejam eles os vândalos mobilizados pelo ódio e a
ignorância, sejam os paisanos de paletó e gravata, sejam os engalanados de
farda.
Estamos diante de uma virada de página significativa e,
talvez, só agora possamos conhecer a efetiva restauração democrática, iniciada
timidamente com o pacto de 1985. Sob o império das circunstâncias, esse pacto
possibilitou a reconstitucionalização de 1988, sem assegurar, todavia, o
império do poder civil — conditio sine qua non de qualquer pretensão
democrática digna do nome.
Abandonando o Planalto pelas portas dos fundos, os militares
conservariam, até aqui, a preeminência sobre a política nacional. Denotativa
dessa distorção é o fato de, hoje, em nosso governo, o ministro da Defesa
comportar-se como mero porta-voz da caserna junto ao poder civil.
Há, portanto, razão para registrar a mudança de rota: pela
primeira vez em nossa história, um ex-presidente da República e meia dúzia de
generais — réprobos, mas poderosos — conhecem o banco dos réus e são
processados pelo poder civil por crime contra a democracia. Isto não é pouco, e
precisa ser destacado.
Senão, vejamos.
A ditadura desbragada cessava em 1985, mas, com a
complacência de um poder civil tíbio e, em muitos momentos, oportunista, os
militares conservaram a soberania sobre as instituições republicanas e a vida
nacional. Ditaram até os termos da democracia contingenciada: nenhuma apuração
dos crimes militares, nenhuma revisão da Lei de Anistia (que só beneficiava os
criminosos) e veto à Constituinte ordinária — que podia passar o país a limpo
—, substituída por um Congresso ordinário que abrigava, inclusive, senadores
biônicos. Precatados, nomearam um bedel para os trabalhos da Constituinte: o
general Pires Gonçalves (um dos redatores do malfadado artigo 142 da CF-88),
que acumulava essa função com a de supervisor do presidente José Sarney, que
chegava à presidência do país redemocratizado nas contingências sabidas, e após
longa trajetória como prócer destacado do regime militar.
Nada de novo no front. Assim havia sido no final da ditadura
do Estado Novo: nenhum dos incontáveis crimes da ditadura foi apurado, nenhum
de seus agentes — sejam os fardados, sejam os canas de todos os DOPS — foi ao
menos processado, quanto mais punido. O capitão Olímpio Mourão Filho,
responsável pela farsa do Plano Cohen (pretexto para detonar o golpe de 1937),
não foi incomodado e chegou a general, com a biografia conhecida. Ora, o
general Gaspar Dutra, ministro da Guerra e operador do golpe (sob a supervisão
do condestável general Góes Monteiro, chefe de todos), seria nada menos que o
presidente da República na redemocratização em 1946!
Na política, como no crime comum, a impunidade é o fermento
da reincidência. Nenhum dos golpistas de 24 de agosto de 1954 foi punido. O
general Juarez Távora e o brigadeiro Eduardo Gomes fizeram-se, respectivamente,
chefe da Casa Militar e ministro da Aeronáutica no governo fantoche de Café
Filho, empenhado em impedir a posse de Juscelino e Jango, eleitos em 1955.
Essa história da conciliação-impunidade permanente se
repetiria — e se repete — até aqui, insólita e monótona. Os militares que
operaram o golpe de 11 de novembro de 1955, como todos os que antes e depois
ergueram baionetas contra a democracia, permaneceram com suas fardas, suas
estrelas, galardões, insígnias, fitas e condecorações; cumpriram longas e
frutuosas carreiras, ganharam postos e comissões, antecipando o sucesso dos
golpistas derrotados em 1961.
O general Cordeiro de Farias, em suas memórias (Diálogo com
Cordeiro de Farias), vangloriava-se de,
sempre na ativa e quase sempre em posto de comando, haver conspirado
sucessivamente contra Vargas, JK e Jango. Na insurreição de 1964 foi, entre
muitos, estipendiado por Adhemar de Barros. Este é seu currículo. O general
Odílio Denys (O Ciclo revolucionário brasileiro), afirma com orgulho, haver
começado a conspirar contra a democracia no dia da posse do presidente João
Goulart.
A cada dia se revelam mais e mais crimes da ditadura
instaurada em 1º de abril de 1964, e talvez jamais possamos conhecer seu
inventário. Mas sabe-se que os torturadores e assassinos — alguns notórios
psicopatas, como o brigadeiro Burnier e o coronel Brilhante Ustra (ícone e
modelo em que se inspiram o capitão Messias Bolsonaro e sua récua) —
permaneceram intocados.
Eis o germe daninho que deu no golpe de 1º de abril e na
longa noite de 21 anos, que os golpistas ora no banco dos réus tentaram
restaurar após a derrota eleitoral de 2022, e que ainda forcejam por restaurar,
em mobilização ideológico-política que envolve setores significativos do
empresariado, governadores, jornalistas, lideranças religiosas, uma base
parlamentar reacionária e, ainda, setores irrecuperáveis da caserna.
É o projeto neofascista que está sob o julgamento da
história.
O assassino de Rubens Paiva — para citar um só caso, notório
em face do belo filme de Walter Salles — chegou ao posto de marechal, gozando
proventos para além de R$ 35 mil, afora os penduricalhos de praxe. E hoje se
sabe, graças às inconfidências do serviço secreto dos EUA (a quem tanto devem
os golpistas de 1964!), que o presidente Ernesto Geisel, outro marechal,
condutor da "transição", autorizou, em despacho com o chefe do SNI,
general Figueiredo (que Geisel faria seu sucessor), o assassinato de perseguidos
políticos nos porões dos quartéis da República.
É preciso crer estarmos virando uma página da história, para
manter viva a aspiração republicana de uma democracia — projeto sempre adiado
pela classe dominante. Se ainda estamos tão longe da democracia social (por
cujo sonho tantos já foram torturados e mortos no Brasil), surge uma nesga de
esperança: a possibilidade de realizarmos, em nosso tempo, uma democracia
política. Para tanto, é necessário mais do que boa vontade: é preciso coragem
das instituições e mobilização social.
Os partidos e organizações progressistas, que com justiça
celebram o enquadramento penal dos golpistas, precisam tornar-se, enfim,
agentes de um processo de mudança em que atuaram, até aqui, sobretudo como
espectadores.
***
O terror colonial não conhece limites — "Mesmo que eu
ganhe um Oscar, voltarei para minha realidade cruel na Cisjordânia",
declarou recentemente o palestino Basel Adra, codiretor do impactante — e
incontornável — No Other Land (Sem Chão, na versão lançada no Brasil). O filme
afinal foi premiado com a estatueta de melhor documentário e, como Adra previa,
o sucesso não mudou sua realidade: há poucos dias, o cineasta foi espancado por
colonos israelenses e, em seguida, sequestrado e torturado pelas forças da Ocupação,
que o levaram preso por qualquer crime que tenham, como de hábito, atribuído à
vítima. Após dias de silêncio tonitruante, a Academia de Hollywood afinal se
pronunciou sobre o fato — tímida, cautelosa e evasiva, sem nomear os algozes.
Mas se pronunciou. Fará diferença?
Cibersegurança ou captura empresarial? — Enquanto os olhos
de todos acompanhavam os dissabores de Jair Bolsonaro e sua gangue no STF,
surgiu no Congresso uma frente parlamentar intitulada FrenCyber, criada sob
forte influência das Big Techs e dominada pela fina flor da extrema-direita
brasileira (de Damares ao General Mourão, passando evidentemente por um dos
filhos do capitão). Apoiada por uma certa DigiAmericas — rede financiada por
gigantes como Google e Amazon —, a frente sinaliza para a entrega da cibersegurança
brasileira a corporações estrangeiras e expõe o país ao risco do colonialismo
digital. O que tem a dizer a chamada grande "mídia" brasileira? Essa
informação já chegou ao Ministério da Defesa?
Por: Roberto Amaral.
[1] Com a colaboração de Pedro Amaral.
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