O ano era o de 1983. Era tempo
de muita movimentação no movimento estudantil na cidade onde nasci e vivo até
hoje, Paulo Afonso, no interior da Bahia. Em plena ditadura, lutávamos por
liberdade de expressão, por grêmios livres e porque éramos contra qualquer
coisa que tivesse o carimbo de “militares” no comando.
As notícias que nos chegavam
eram sempre através de emissários vindos da cidade de Recife em Pernambuco ou
de Salvador na Bahia. Com essa, mesmo sendo a capital do Estado tínhamos menos
contatos. Outras vezes, as informações nos eram repassadas por telefone. Aí
teríamos que ir para a fila da “cabine pública” da antiga TeleBahia que ficava
na Rua São Francisco no centro da cidade.
E foi assim que nos chegou à
informação de estudantes secundaristas de todo o Brasil estava se programando
para realizar um encontro de reconstrução de sua entidade a UBES – União
Brasileira dos Estudantes Secundaristas na cidade de Campinas em São Paulo.
Após vários encontros, a entidade local, CEUSPA – Centro dos Estudantes
Universitários e Secundaristas de Paulo Afonso elegeram quatro delegados. Eu,
Zé Ivandro, Marcos Fernandes e Nivaldo Lopes.
Foi um tal de bater de sala em
sala, nas escolas para pedir ajuda aos estudantes para viabilizar a viagem até
Campinas. Naquela época, quando entravámos em sala de aula, havia um grande
respeito pelo trabalho que realizávamos nas escolas. Muitas eram as pessoas que
nos ajudavam. Cada uma dentro das suas possibilidades.
Quando chegou o dia da viagem,
me dei conta de que aquela seria a primeira vez que iria tão distante de meu
“mundo”. Me enchi de alegria, é um sentimento que lembro até os dias de hoje. O
privilégio de poder ter acesso a lugares e situações nunca vividos antes. O
movimento estudantil me proporcionou conhecimento e crescimento pessoal.
Saímos de Paulo Afonso às
14:30. Passávamos por estradas de terra batida. Asfalto só fomos ver quando
chegamos à Feira de Santana, já a noitinha. Foi a parada para a janta. Jantar
para os quatro era pão com manteiga e café, e estava tudo certo. Zé Ivandro era
o mais velho da turma. Era dele a responsabilidade pelos matutos que estavam
indo.
Já quando amanhecia o dia,
aquela paisagem sertaneja de árvores retorcidas e mortas, e de coloração
amarronzada ficou para trás. Meus olhos estavam captando cores e matas que
antes nunca tinha visto antes. O ônibus seguia por entre matas atlânticas, e eu
estava mesmo abestalhado com tudo aquilo. Era como se fosse um outro mundo. E
era.
Dentro do ônibus tínhamos a
cara do Nordestino que saia de seus lugares em busca de trabalho e uma vida
melhor em São Paulo. Pessoas com crianças de colo que pareciam ter acumulado
todo o choro de meses para durante aqueles dias, despejarem em alto e bom som.
Muitas histórias faladas por vizinhos de poltronas, que não se importavam de
que outros soubessem da filha que fugiu com o primo, do irmão que está preso
porque roubou um bode para comer de tira gosto com os amigos no final de
semana. Só quem já pegou um transporte desses, sabe o quanto é divertido cada
minuto na estrada.
Durante um dia, uma noite e
mais um dia, Zé Ivandro não conseguia dormir direito. Na verdade, eu sempre
digo as pessoas que ele não dormiu nada. Ele tinha um sonho, queria ver a Ponte
Rio Niterói. Para ele era o que valeria na viagem, e nos pedia para que, acaso
dormisse, nós o acordássemos antes de entrar nela.
Na segunda noite, ele já não se
aguantava de tanto cansaço. Quando começou a escurecer, a cada pequena
aglomeração de luzes, ele perguntava se já era Niterói. As respostas do que
conheciam a estrada era sempre, “tá longe”. Longe para nordestino é igual “légua de beiço”, “bem alí”. Longe que só a
miséra.
De repente alguém disse,
“estamos chegando”. Zé se encheu de alegria, mas não era Niterói. Já eram umas
duas horas e tantas da madrugada quando sem aguentar o cansaço, ele disse, “vou
dar um cochilo. Quando chegar na ponte tu me chama”. Balancei com a cabeça
afirmativamente, mas com a certeza já, de que isto não aconteceria, claro. Meia
hora depois, surgiu em meus olhos aquela maravilha da construção civil no
mundo, a ponte Rio Niterói. Com suas luzes de sinalização mudando de formato a
cada quilômetro. Aquilo era extraordinário para mim. Eu tinha o privilégio de
ver a ponte Rio Niterói. Meus amigos falaram para que eu acordasse Zé Ivandro
para ele ver. E eu? Disse, “não!”. Acordar era perder a graça de ver o “gordo”
não ter esse prazer. E assim foi feito. Eu sabia que poderia dar em confusão,
mas eu estava tão feliz e rindo que, valeria.
Quando o ônibus foi chegam ao
final da ponte e entrada da cidade do Rio de Janeiro, eu bati no gordo e disse,
“acorda, acorda, olha a ponte”. Ele deu um pulo na poltrona e perguntou, “cadê?
Cadê?” e eu mostrei apontando que tínhamos acabado de passar por ela. O cabra
ficou tão mordido de raiva que eu achei que iria ser mandado de volta no
primeiro transporte que tivesse. Fechou a cara para o meu lado e só voltou a
falar quando chegamos na rodoviária do Tietê em São Paulo.
Mas antes, quando chegamos na
rodoviário do Rio eu sabia que precisava pisar no solo para sentir que eu
estive naquela cidade. Vi o motorista descer e fui seguindo ele. “Não tem
parada aqui, é só para saber se alguém vai subir. Parei e tive um momento de
decepção. Como eu não pude pisar no Rio de Janeiro. Isto para mim era como ir à
lua e ficar dentro da cápsula vendo Armstrong dando seus passos antes de
qualquer outro. “Eu só quero esticar as pernas um minuto”. Falei quase
implorando. O motorista me olhou com uma cara feia arretada e disse, “não pode
sair daqui. A felicidade me invadiu. Desci, dei uns três passos e ouvi, “vamos.
Não tem ninguém para subir”. Eu enfim tinha conseguido pisar no meu solo lunar.
A viagem até São Paulo
transcorreu no clima de cara fechada de Zé Ivandro, de felicidade minha e com
as conversas, choros, cheiro de comida que as pessoas levaram para não ter que
gastar nas paradas do ônibus. Bastava uma olhada de lado e as pessoas ofereciam
algo para comer. Ser Nordestino é o que de melhor há em mim. Esse povo é lindo.
Na rodoviária em São Paulo, vi
tanta gente que confesso, fiquei assustado com tantos nordestinos juntos em um
só local que não o Nordeste.
Zé Ivandro que já tinha voltado
a falar comigo, estava esperando o nosso contato. Ele viria nos buscar e nos
encaminhar até Campinas. O medo era da polícia naqueles dias.
A fome apertou e fomos tomar um
café no primeiro andar. Ao passar por uma “borboleta”, cada um de nós recebeu
um papel com vários nomes de alimentos escritos. Foi a primeira vez que tive
contato com a palavra, “comanda” no sentido de que servia para anotar o que se
consumia e depois passar no caixa para pagar.
Antes de terminarmos, ouvi um
barulho na saída da lanchonete. Era um homem alto, com uma mala dentro de um
saco e amarrado por uma embira. Ele tentava sair, mas era contido pelo rapaz
que distribui as comandas. Como não tinha consumido nada. Teria que devolver o
papel ao rapaz. Nervoso com a situação, aquele personagem saído da música
“pau-de-arara” dos pernambucanos Luiz Gonzaga e Guio de Moraes, imortalizada
pelo Rei do Baião, diante dos nossos olhos. Fomos ao encontro e conseguimos o
acalmar. Tudo foi resolvido calmamente, e o homem nos olhava ainda assustado.
E lá vamos nós em direção a
Campinas para o encontro de reconstrução da UBES
Leia na próxima semana: “A
maleta era um saco, e o cadeado era um nó”. Nordeste nu e cru.
Na sequência, o final da
história com “Deu merda no final do encontro de reconstrução da UBES”.
Até hoje eu guardo essa mágoa Dimas Roque. Vou passar um ano sem falar com você.
ResponderExcluirMeu querido amigo, o importante é que estamos na luta por justiça social até hoje. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk Te amo meu irmão
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