Eu sou do tempo em que nós íamos
a escola para estudar. Mas a diversão com os amigos que conhecíamos a cada ano
era, e foi, o que de melhor ficou. Da quinta a oitava série, como era a
classificação antes, eu estudei na Escola Polivalente na cidade de Paulo Afonso
na Bahia. Deste período existem boas histórias.
Uma delas aconteceu no ano de 1977.
Naquele ano a Igreja Católica, para mobilizar a juventude, resolveu criar uma “Gincana
Estudantil”. Ela aconteceu no mês de maio, o mês de Maria. Foi montado um palco
em frente da Catedral de Nossa Senhora de Fátima e durante uma semana, as
noites, estivemos lá.
Participaram o Colégio Sete de
Setembro, onde só estudavam os “filhos dos ricos da cidade”, o CIEPA - Centro Iintegrado de Educação de Paulo Afonso, com os alunos de idade mais avançada, e
o COLEPA – Colégio Paulo Afonso da Chesf, que tinha toda a estrutura da
mesma para competir e a Escola Polivalente, de ensino público e onde estudavam os
“filhos dos pobres”.
Para participar da equipe
composta por 10 alunos, a direção da escola deixou a responsabilidade entre
todos nós. E já que isto significaria deixar de assistir algumas das aulas, a
turma do matutino resolveu assumir a empreitada. Não deixando de fora quem do
vespertino quisesse participar. A verdade é que a comunidade estudantil, como
um todo, resolveu aderir e a escola, literalmente, parou em função do “jogo”.
Nós sabíamos que as nossas
chances não estavam no poder do dinheiro do Colepa/Chesf ou do Sete de
Setembro. Muito menos na força dos técnicos estudantes do CIEPA. Nós só teríamos
alguma chance de vencer se nos uníssemos e usássemos o que nunca faltou aos
estudantes do polivalente, a inteligência.
Todos os dias tínhamos que
cumprir tarefas dadas na hora do evento e recebíamos outra, com o grau de
dificuldade ainda maior e que tinham pontuação diferenciada das demais. Naquele
ano, não deixamos de realizar uma única na noite. E isto nos deixava de igual
para igual com as outras equipes. Nós estávamos lutando com os gigantes e mesmo
assim, não éramos deixados para trás.
Três tarefas definiram a
nossa vitória.
A cabeça raspada
Foi solicitado que cada grupo
levasse no dia seguinte um aluno com a cabeça raspada. Saí naquela noite com
uma certeza: passar pela manhã em todas as salas e perguntar quem topava a
tarefa. Assim foi feito.
Ao entrar na quarta sala e
depois de já estar muito preocupado, pois ninguém tinha tido a coragem. Ao
falar, um garoto se levantou e disse que topava. “Pelo polivalente vale tudo.
Não podemos perder por isto”. Ficamos todos surpresos pois era o mais jovem da
sala. Ele foi informado que teria que ir em sua casa, trazer a mãe ou o pai
para confirmar e só assim, aceitaríamos. Ele concordou e saiu em busca.
Enquanto isto continuamos nas outras salas sem ter sucesso. Já estava chegando
ao meio dia quando aquele garoto entrou na escola de cabeça raspada e
surpreendeu a todos quando disse que não tinha ido em sua casa. Que só iria à
noite, após a apresentação das tarefas. Sem ele, eu teria que raspar a cabeça.
Com ele ganhamos os pontos necessários.
O Carro
A coordenação da gincana pediu
um carro pintado nas cores verde e amarelo. Tinha que ser 50% de cada.
Minha mãe tinha um fusca
amarelo. Seria fácil para nós. Mas não foi. Dona Regina Roque, que Deus a tenha
em um bom lugar, disse “não”. Era a manhã do dia da entrega da tarefa. Eu e
mais um casal de amigos do grupo saímos preocupados com a situação. A solução?
Ir nas oficinas e tentar conseguir com uma alma caridosa um carro para usamos
na tarefa. Indo para a escola, encontramos uma oficina que ficava onde agora
está o Supermercado Suprave. Conversamos com o mecânico proprietário. Ele
disse, “emprestaria com certeza. Mas o pessoal do Ciepa já passou aqui a uma
meia hora e eu me comprometi com eles. Mas se eles não aparecerem para buscar
até o meio dia, eu passo para vocês”. Foi um misto de alegria e preocupação. O
CIEPA e o COLEPA estavam disputando diretamente conosco. Mas foi a frase final
dele que me deu uma ideia. Ao sair, fomos ao Polivalente, chamei três alunos de
confiança e pedi para arrumarem blusas do CIEPA, irem até o mecânico e dizer
que podiam passar o carro para outro. Ao mesmo tempo, entramos em contato com o
grupo do Sete de Setembro, informamos do carro que estava sobrando e que eles
podiam ir lar buscar. Porque isto? O Colégio estava em 4º lugar e não nos alcançaria
mais. Assim foi feito. Fiquei sabendo que foi uma confusão da zorra quando a
turma do CIEPA ficou sem o carro e não teria como ter os pontos.
Voltando a minha mãe. Chamei o
maior número de pessoas que podia e voltei a minha casa para implorar que ela
deixasse pintar o carro. Teve choro de quase todos, até que ela concordou. Mas
só se fosse com tinta “Guache”. E assim foi feito.
Lembram do carro que foi para
o Sete? Chegou empurrado e sem motor. Guardem essa informação.
Feijão
A Gincana também servia para
arrecadar alimentos a serem distribuídos as pessoas carentes da cidade. A
Igreja aproveitou para fazer este trabalho social.
Pedi aos estudantes que trouxessem
um quilo de feijão a escola no outro dia. Eles fizeram. Muitos trouxeram mais
do que um quilo. Já ia dar 11h quando soubemos que os estudantes do Colepa
tinham arrecadado muito mais do que nós. A empresa tinha entrado diretamente no
jogo. Era a força do mais forte agindo. Foi quando lembrei que Pia, um amigo,
era filho de um ex-vendedor de feijão e que, após a morte do seu pai, os dois depósitos
que ficavam na Rua São Francisco estavam fechados, mas lotados de mercadoria.
Naquele ano, ele estava namorando uma garota que estudava na escola. Ia lá
quase que diariamente. Então, fui até ele e fiz o pedido de que nos conseguisse
alguns sacos. Ele disse, “podem pegar quantos quiser. Só há um problema, acho
que estão quase todos estragados”.
Ao chegar ao deposito o cheiro
era muito ruim. Mesmo assim, não tínhamos outra alternativa. Como só precisaríamos
entregar a tarefa no último dia, pensei, “vamos colocar o feijão ao sol”. E o
melhor local seria na escola. Não foi difícil convencer professores e
diretoria. Todos já estavam impactados com o nosso desempenho na gincana.
Abrimos os sacos que vieram no caminhão. Espalhamos por todos os cantos possíveis
dentro do colégio em que o sol batesse. Duas a três horas depois, tinha gorgulho
subindo até pelas paredes. Enquanto uma equipe ficou tentando retirar os bichos
com vassouras, todo o restante estava focado nas outras tarefas.
No último dia da Gincana, chegamos
na cúria diocesana, ao lado da Igreja com duas caminhonetes cheias de sacos de
feijão. Alguém deve ter batido a língua de como estavam as nossas leguminosas.
Na chegada, fui intimado a falar a verdade e falei. Estávamos com feijão como tinham
pedido.
No enchimento dos sacos na
escola, eu pedi para colocarem meio saco do feijão furado e completar com meio
saco do feijão arrecadado pelos estudantes. Como a pesagem só se daria ao final
da competição do dia, não deixei que abrissem antes os sacos. Foi uma noite
nervosa.
Terminado tudo, estávamos na
disputa direta com o COLEPA, o Colégio Sete de Setembro e CIEPA já não tinham
nenhuma chance e o mais bonito, torciam por nós. A pesagem do feijão era definidora
para a vitória nossa. Se não aceitassem o nosso, a derrota viria.
A coordenação da Gincana
estava braba conosco. Só autorizou que os Capitães das Equipes entrassem na cúria.
E assim foi feito. Eu lembro de frases do tipo, “isso não é correto”, “se
estiver misturado, não é feijão”. E ao ouvir a frase, me veio a imagem do carro
pintado sendo empurrado por estudantes. “Se carro sem motor é carro, porque
feijão furado não é feijão?” Perguntei. O silêncio na sala foi tão grande que
se ouvia a conversa das pessoas na frente da Igreja. Também percebi que mesmo o
feijão estando furado, ele poderia ser consumido. E que a parte superior de
cada saco estavam de boa qualidade. Com a ajuda dos capitães do Sete e do
CIEPA, a tarefa foi aceita. Pesaram os sacos de feijão de cada escola e ao
final saiu o resultado. Os esforços de cada um dos estudantes da escola que
entrou na disputado sendo vista pelos demais como a que primeiro seria
derrotada, não foram em vão. Nós fomos os vencedores daquela gincana e o dia
seguinte é até hoje o dia de maior significado em minha vida de estudantes.
Às 08h da manhã, uma turma de
estudantes veio à minha casa. Eu ainda estava dormindo e fui acordado por eles que
invadiram o meu quarto. O troféu tinha ficado comigo para entregar a diretoria.
Na escola, todas as turmas estavam preparadas este momento de festa. Foi também a primeira vez
que meu pai, Argemiro Roque, saiu de casa por estar se sentindo feliz e
orgulhoso por um trabalho que eu estive diretamente coordenando. Tenho
ainda hoje a imagem dele sentado comigo e vários estudante no meio fio em
frente ao CEAPA (mercado público), esperando a ordem para irmos encontrar todos. A chegada a
escola naquele dia, até hoje, ao lembrar me emociono. Aquela multidão nos
esperando e feliz. Foi o dia que o improvável venceu aqueles que tinham a
certeza da vitória.
Ao chegar no portão de acesso,
os mais animados me colocaram nos ombros e aos gritos de “hei, hei, Dimas é
nosso Rei” gritado pela multidão eu vi lagrimas nos olhos do meu pai.
Durante o dia não houve mais
aulas. Foi de diversão e congraçamento entre todos.
Um dia que o tempo não vai
apagar. A história deve ser preservada.
Obrigada dimas pelo resgate da história de nossas VIDAS!
ResponderExcluir