O bebê é pequenininho, menos de um mês. Nasceu na cadeia e lá vive com sua mãe. A cela tem capacidade para doze pessoas, mas está ocupada por 18 lactantes. A mãe cumpre pena por furtar ovos de páscoa e um quilo de peito de frango. Foi condenada a três anos, dois meses e dois dias por esse crime.
A defensoria pública de São Paulo pediu um habeas corpus na última sexta-feira. Acionou o Supremo Tribunal de Justiça para pedir a anulação do crime, por ser insignificante; a readequação da pena; ou a prisão domiciliar, garantida pela leis às mães responsáveis por filhos menores de 12 anos.
O argumento é que a sentença é desproporcional à tentativa de furto e que a mulher é mãe de mais três crianças, de 13, 10 e 3 anos de idade. Além do bebê, que será separado da mãe quando completar seis meses. As quatro crianças crescerão longe da mãe, se ela seguir cumprindo pena na Penitenciária Feminina de Pirajuí, no interior de São Paulo.
O ministro do STJ, Nefi Cordeiro, negou o pedido da Defensoria e manteve a pena da mãe em regime fechado. Determinou que ela deva cumprir toda a pena na prisão por causa de “circunstâncias judiciais gravosas”. Disse “não vislumbrar a presença dos requisitos autorizativos de medida urgente.”
Quem é Nefi Cordeiro? Curitibano, oficial da PM, formado pela Federal do Paraná. Tem duas medalhas concedidas pelas Forças Armadas, a do Pacificador e Ordem do Mérito Militar. Foi nomeado para o STJ por Dilma Rousseff.
Nefi Cordeiro determinou em julho de 2016 a soltura de Carlinhos Cachoeira, Fernando Cavendish (da Construtora Delta), e de Adir Assad e Cláudio Abreu. Presos na Operação Saqueador, eles são acusados de integrar um esquema que lavou R$ 370 milhões de reais de dinheiro público.
Nefi Cordeiro confirmou em 2015 uma condenação por tráfico de duas gramas de maconha – isso mesmo, duas. É o menor caso de condenação por tráfico já registrado. A pena foi de quatro anos e onze meses. O tráfico aconteceu 15 anos antes, em 2000, em Cataguases, Minas Gerais.
Nefi Cordeiro concedeu habeas corpus a quatro PMs cariocas que fuzilaram com 63 balas um carro com cinco jovens inocentes, matando Roberto, de 16 anos, no caso que ficou conhecido como Chacina de Costa Barros. No dia 7 de julho de 2016, a família disse que após o habeas corpus, a mãe de Roberto, a cabelereira Joselita, morreu “de tristeza”.
É lugar comum dizer que o Brasil precisa de reformas. Mas reformas são leis, e leis dependem de aplicação, e isso é feito por seres humanos, juízes. No Brasil, muitos juízes aplicam as leis como bem entendem. É a velha piada que advogados contam: “de cabeça de juiz e bunda de nenê, nunca se sabe o que vai sair.”
Nunca se sabe, mas todos sabemos que a justiça brasileira frequentemente tarda e falha, e tarda e falha especialmente quando o acusado tem dinheiro. A estrutura de senzala do Brasil está tão integrada à nossa sociedade que ninguém estranha que haja prisão de luxo para quem tem diploma universitário, e de lixo para quem não teve dinheiro para estudar. Como ninguém estranha o elevador de serviço, a diferença da cor de pele entre ricos e pobres, 60 mil assassinatos anuais, ou o fato de metade dos brasileiros não terem esgoto em casa.
Nunca houve justiça no Brasil e não haverá tão cedo. Como nunca houve democracia e não haverá tão cedo. Temos pouca experiência com uma e outra. Esse é o fardo histórico que todo brasileiro tem que carregar, bestas de carga, deitados eternamente em berço esplêndido.
Mas Justiça é um tema cada vez mais central na vida de todos nós. Porque a natureza da sociedade abomina o vácuo. Então o Judiciário vem preenchendo – correta e incorretamente, com moderação e com messianismo - o vazio deixado pelo Executivo e Legislativo, que há tempos abdicaram de nos representar. E seguem ignorando solenemente desejos e necessidades da maioria, e enchendo os bolsos numa lambança sem fim, como nos informa todo dia o noticiário.
Mas membros do executivo e legislativo podem perder o emprego. Juízes não. É mais fácil arrancar uma presidente eleita por 53 milhões de votos do seu cargo que demitir um juiz do supremo tribunal de justiça.
Talvez antes de qualquer outra reforma, o Brasil precise de uma reforma profunda no Judiciário. Que o torne ágil e transparente, potente e permeável à fiscalização da sociedade.
Que dê alguma credibilidade a um poder que mantém na cadeia uma mãe miserável que furtou frango e ovo de páscoa, mas concede a prisão domiciliar a Adriana Ancelmo, esposa e comparsa do ex-governador, casal que fez fortuna com a miséria dos mais miseráveis cariocas - exatamente a gente que, no limite, furta comida.
Não se trata de “cortar as asas” do Judiciário, sonho da curriola de políticos e empresários que se organiza para fugir de investigações e delações. Se trata de tratar de maneira mais equânime os ladrões da esquina e os ladrõezões de terno e gravata.
Essa semana a polícia paulistana prendeu com grande balbúrdia traficantezinhos na Cracolândia. Também esta semana, o Supremo Tribunal Federal condenou Paulo Maluf a sete anos de prisão por lavagem de dinheiro que ocorreu no seu mandato de prefeito, entre 1993 e 1996. Finalmente Maluf vai pra cadeia? Não, ainda há espaço para recurso, mais de trinta anos depois do roubo cometido...
O juiz é um funcionário público como qualquer outro. Eles têm que ser tratados de acordo. Trabalham para nós. Têm que responder para nós. E, se for o caso, serem corrigidos, ou até punidos por nós. Nossa Justiça, e ausência dela, e revisão profunda do que significa justiça no Brasil, é pauta urgente e bem mais importante do que quem vai sentar no Palácio do Planalto nos próximos meses.
Mas alguns casos, algumas pessoas, talvez estejam além da capacidade da sociedade brasileira de corrigir seu rumo. A decisão de Nefi Cordeiro que mantém uma mãe de quatro filhos na cadeia, por furtar frango e ovo de páscoa, é incompreensível para nós. Está em outro domínio. O do inimaginável, do inumano, além da imoralidade, além da redenção.
Por André Forastieri.
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