Com um Congresso desmoralizado e partidos que não representam ninguém,
vamos para mais um arremedo.
A chamada
reforma política, há tanto requerida por gregos e troianos – sua necessidade e
urgência talvez seja a única unanimidade de nossos tempos – far-se-á em
momento inadequado e, por tudo o que é sabido, não será, ainda, a reforma
necessária. Esta deverá esperar outras circunstâncias, como uma Constituinte
com condições políticas de passar o País a limpo.
Na realidade, o que nos é apresentado são
tentativas de correção do processo eleitoral sem qualquer incursão na
legislação partidária, e muito menos nas funções e competência do Poder
Judiciário, mormente o Tribunal Superior Eleitoral. Não se cogita, não se pode
cogitar, da reforma do Estado. Qualquer que seja o alcance dessa reforma em
gestação no Congresso, será, portanto, uma minirreforma capenga. Uma entre
tantas das muitas que vêm sendo ditadas desde 1985. Para usar um termo em uso
na República de Temer, uma ‘pinguela’ para podermos chegar a 2018 com uma ordem
jurídica razoavelmente conhecida, sem abalos de última hora, sem golpes
legislativos ou judiciais.
Os momentos de crise, e crise profunda como a
que o País está vivendo, são os menos indicados para reformas políticas, e
ainda menos aconselhável é que essas reformas fiquem à conta de um Parlamento e
de partidos que nada representam: a crise fundamental é de legitimidade dos
poderes. Mas é o que temos e sobre todas essas contingências negativas,
sobreleva a certeza consensual segundo a qual não teremos eleições minimamente
legítimas e legitimadoras se a atual legislação, condenada, não for alterada.
Vamos, então, para mais um arremedo.
Nesses termos, se a reforma política
necessária ainda não está na ordem do dia – porque não atenderá aos interesses
da nova hegemonia que tomou de assalto o Estado e controla o
Congresso –, tratemos da reforma possível, segundo as condições
disponíveis. Nesse sentido caminha o relatório do deputado Vicente Cândido (PT-SP).
Duas de suas propostas, cruciais, exigem
emenda constitucional, o que pode retardar a reforma, que, assim, mais uma
vez será implantada por etapas, portanto carente de uma lógica interna. São
elas o fim da reeleição para todos os níveis do Executivo (acompanhada do
aumento dos respectivos mandatos de quatro para cinco anos), e, finalmente, a
instituição de mandato de dez anos, não renováveis, para ministros e membros
das Cortes, como o Supremo Tribunal Federal. É evidente que essa só medida
não corrige as mazelas todas do nosso lamentável e antidemocrático Poder
Judiciário em suas diversas instâncias, mas é alvissareiro ponto de partida.
O relator também incorpora a instituição da
chamada ‘lista fechada’ para as eleições parlamentares, mediante a qual a ordem
dos possíveis eleitos é predeterminada pelo partido. O eleitor, ao invés de,
como até aqui, votar num determinado candidato, vota num partido, uma ficção no
lamentável quadro político brasileiro. Esta tese foi sempre defendida pelo
campo das esquerdas (cujos partidos são aqueles que mais guardam organicidade),
e combatida pela direita e pelo ‘Centrão’, no Congresso, mas agora é
ardentemente defendida pelas lideranças dos grandes partidos conservadores –
PMDB, PSDB, DEM et caterva – e,
significativamente, contra ela se insurge a grande imprensa, que vê na medida
uma artimanha para salvar os mandatos de parlamentares acusados de
irregularidades e, assim, carentes de apoio popular (isto é, votos).
Há, porém, a este propósito, uma questão de
fundo: a já referida falência de nosso sistema de partidos, siglas na sua
maioria administradas por gerentes ou caciques e suas oligarquias, em
quase todos os casos sem qualquer prática de democracia interna. Na
verdade, dominada a ordenação das listas pelas direções partidárias, o novo
sistema terminará por converter-se em instrumento conservador de mandatos,
fortalecendo as oligarquias partidárias e dificultando a sempre necessária
renovação de mandatos parlamentares.
Não é possível uma reforma qualquer, nesse
aspecto, se não se cogita de por em debate a atual legislação partidária.
Outro antigo pleito acolhido pelo deputado
Vicente Cândido é o fim das coligações nas eleições proporcionais, mas ele se
esquece de instituir, pari passu, a
federação de partidos. Assim, com o bom propósito de punir as siglas de aluguel
e negócios escusos, se estará, na verdade, impedindo que correntes ideológicas
no extremo do espectro político tenham representação no Congresso.
Há questões graves que permanecem intocadas,
a saber, o rateio do fundo partidário e do tempo de televisão, fundamentais nas
campanhas. É evidente que é necessário exigir-se um razoável desempenho
eleitoral, tanto para que o partido tenha representação parlamentar, quanto
para que tenha acesso a tempo de televisão – em regra utilizado pelas
siglas comerciais, a maioria, para vender coligações nos pleitos majoritários,
quando o desempenho no horário eleitoral gerido pelo TSE torna-se decisivo.
A propósito de TSE, a reforma não cogita de
pôr cobro ao seu nocivo hábito de, a pretexto de regulamentar a legislação em
cada eleição, mesmo quando não há alteração legislativa, ingressar no velho
vezo, que terá aprendido com o Supremo, de atuar como se fora poder
legiferante.
O financiamento público das campanhas – a
realidade grita – é medida inadiável e necessária, e o Fundo Eleitoral
precisará de régua e compasso para assegurar que a isonomia partidária não se
transforme em instrumento de pulverização dos recursos púbicos, ou que estes se
tornem mais um instrumento de poder das oligarquias partidárias.
Mas precisa complementar-se com a drástica
redução dos custos das campanhas eleitorais, comandadas – com as estarrecedoras
e conhecidas consequências – por marqueteiros desvinculados da
política ou de qualquer juízo ideológico, cujo papel, milionário, é o de
intervir para manipular a opinião dos eleitores com artifícios alheios à
política, de particular nos programas de televisão. Estes deverão ser postos a
serviço da transparência, seu conteúdo deve ser tão-só o discurso puro e limpo do
candidato, sem participação de terceiros, sem truques e sem trucagens e sem os
conhecidos recursos da mídia comercial.
As dificuldades visando à implantação dessas
medidas, tão poucas, e o relator merece nossas homenagens, são indicativas da
crise política que, não podendo sanar, a reforma de hoje tenta contornar.
Não é ainda a travessia para um regime
legítimo, popular, representativo, mas é o primeiro e necessário passo para
que, asseguradas as eleições de 2018, possamos partir para uma Constituinte
que, legítima e legitimadora, reconstrua a ordem constitucional-democrática
comprometida com a emergência das massas e o aprofundamento da democracia que,
curando a democracia representativa de suas limitações de hoje, caminhe para a
democracia participativa – que era, aliás, o projeto do constituinte
de 1988.
Essa Constituinte não descerá do céu como
milagre dos deuses apiedados com nossa tragédia continuada, mas dependerá da
organização popular que, por seu turno, dependerá de novas direções e comandos.
Ou seja, dependerá de partidos políticos e políticos, líderes e não gestores,
capazes de construir uma nova hegemonia – esta,
democrático-popular – que terá substituído a súcia que tomou de
assalto a República, grupo poderoso que todavia não representa a complexidade
das relações sociais, composto que é pelo conluio oportunista do agronegócio,
com o clero evangélico-mediático e o capital financeiro rentista, nacional e
internacional.
Lá como aqui. O candidato da direita no Equador, derrotado por Lenin Moreno, vice-presidente
de Rafael Correa, reagiu à vitória da esquerda tal qual, aqui, seu colega Aécio
Neves: pedindo recontagem dos votos. Lenin igualmente derrotou todas as
previsões, expectativas e anseios da grande mídia brasileira.
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia.
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